Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
É preciso partir e deixar para trás o meu rosto
desfigurado pela tristeza, sei lá se pela indiferença. Não
tenho ilusões, nunca recuperarei aquele outro rosto que
ficou esmagado em Berlim, mas talvez um dia
reencontre uma centelha da paz que habitava a nossa
casa da Friedrichstrasse.
Sara olha-me, e o seu olhar matinal permanece
transparente e hoje está feliz. Ou sou eu que estou
quase feliz?
Ela abre a carteira para tirar um lenço e,
atrapalhadamente, apanha um pequeno jornal que caiu
ao chão, fá-lo mergulhar no saco, mas eu vi, tenho a
certeza de que vi, é “A Guerra Ilustrada” dos Aliados,
nem consigo acreditar, o meu peito explode de alegria,
como não acontecia há muito. Ao cabo de dois anos,
entendo a razão da proximidade que sempre senti e
reprimi, mais do que proximidade, o conforto da
presença e do olhar de Sara, a bela portuguesa, que
sempre me pareceu uma ilustração bíblica.
Olho-a de frente, o sorriso enfim libertado, e tiro da
minha carteira os documentos com o visto para a
América, confio-os nas suas mãos e ela, inteligente,
compreendeu tudo.
Abraçamo-nos com comoção.)
Sara
(Camille atrasou-se, é a primeira vez, sempre tão
pontual, que nada de mal tenha acontecido, a PVDE
anda em cima dos refugiados, ela anda sombria e
nervosa, agora já a conheço e ponho-me a pensar como
é possível conhecermos alguém de quem nada sabemos
e com quem trocamos tão poucas palavras. O rosto fala
e o dela nem sempre, tão fechada dentro do silêncio, há
dias em que o chapéu a dançar nas suas mãos diz mais
do que a boca ou os olhos.
Gosto de Camille. Gosto dela com um sentimento que
desconhecia. Nas horas que passamos nesta sala, ela é
uma companheira silenciosa, quase uma amiga. No
princípio tão diferentes, fomos descobrindo um lugar
de pensamento onde estamos juntas, cada vez mais
parecidas. Esse é o lugar de duas raparigas longe de
casa, sem mãe, a procurar romper o vento para não ser
ele a triturar os nossos sonhos como papéis velhos
esmagados por mãos iradas e atirados ao lixo. Ou como
flores secas que é preciso arrancar das jarras para as
trocar por ramos frescos.
É ela que chega, finalmente, vem corada e sem chapéu,
mas sorri um “bom dia” português. Senta-se, pega no
trabalho e, já tranquila, começa a coser.
Olho Camille e não a vejo a ela, sou eu que estou ali,
pensativa, a debruar um chapéu de feltro.
Foi tanto o que aprendi com ela, acho que sem me dar
conta lhe fui copiando o corte da roupa, alguns gestos,
a elegância do andar sobre os saltos, o modo de sentar.
E fico feliz quando ela elogia a minha roupa, os sapatos,
o penteado. Já os meus chapéus nem em sonhos se
aproximam dos que lhe saem das mãos. Quem me dera
caminhar pelas ruas da Baixa com um chapéu daqueles!
E os livros? Quantas vezes aconteceu descobrirmos que
lemos os mesmos livros e rimos quando nos
apercebemos de que ela, como eu, traz sempre um livro
na mala. Não conheço outra rapariga que tenha esse
hábito, no ateliê até gozavam comigo, mas depois
pediam-me para contar a história. Com os filmes era a
mesma coisa, à segunda-feira passava a tarde a contar o
filme que tinha ido ver no domingo com os meus
primos. E eu, entusiasmada a contar, pressentia os
actores que entravam e saíam da sala de trabalho e
acenavam para mim. O António parece um actor de
cinema, eu acho, nem parece da província, deve ser
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