Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 32

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 Sarah Epstein – e partiria para Bordéus, onde conseguiria um visto que me trouxe até Lisboa. Pára, pára, memória, que não me largas, abriga-te no buraco negro onde enterrei o coração! E Sara fita-me, interrogativa, já não baixa os olhos, que cara terei eu feito sem me dar conta? Cautela, muita cautela, que eu não sei nada desta rapariga, cada vez mais parecida com uma parisiense. É linda, por vezes penso, que tolice, que também ela pode ser judia, mas não em fuga como eu. Quem é Sara, afinal?) 32 Sara (Está triste, bem vejo, às vezes voa pela janela e só deixa atrás a sombra a segurar o chapéu. Gostava de lhe dizer qualquer coisa amigável, pois se já quase conseguimos falar com meia dúzia de palavras e muitos gestos. Mas dizer o quê? Nem sequer posso contar-lhe como estou apaixonada e feliz, seria cruel, agora que sei que vive sozinha em Lisboa. O que terá deixado em Paris? Talvez um noivo, ou talvez, que horror, a memória da família morta na guerra. O António contou-me, ouviu na BBC que os Alemães estão a matar muitos franceses, prendem todos os que resistem e todos os judeus, crianças e tudo, encerrados em campos e mandados para muito longe. Como posso saber se ela não estará assim por falta de notícias, oxalá não seja por uma notícia má. Já gosto dela, já não tenho acanhamento, é quase uma amiga a quem gostaria de contar coisas da minha vida. Agora até tenho vontade de lhe dizer que nasci na Beira Alta, que fui educada em Lisboa pelos meus tios, desde pequenina, que a minha mãe morreu e que essa é uma grande tristeza que não se apaga nunca. Quem sabe se a mãe dela não morreu também, para estar aqui sozinha, longe de casa. Estamos as duas longe de casa. Levantou-se e foi à janela, parece-me que suspirou, nem olho. Volta a sentar-se e agora oferece-me um grande sorriso, até me pareceu desajustado ou ensaiado. Aponta para o meu vestido, diz “muito elegante” com o sotaque estrangeiro que me faz sempre sentir dentro de um filme, respondo, “merci” e, sem pensar, estendo a minha mão, onde resplandece um losango cravejado de brilhantes, ai!, irresistivelmente, estou a mostrar-lhe o meu anel de noivado. Levanta-se outra vez, ah! dá-me um abraço, o primeiro abraço.) Camille (O que eu andei para chegar a horas e não consegui, até o meu chapéu voou arrastado pelo vento, parece que decidiu ficar em Lisboa. Um eléctrico e outro eléctrico, e ruas e degraus e praças e outras ruas e outras praças a passarem em filme na janela, desfocadas. Na longa paragem do Rossio, a surpresa da cidade a erguer-se bela diante de mim e, pela primeira vez, as fulgurações da calçada são luzes de celebração e não holofotes a cegar-me sem piedade. Aqui estou, uma vez mais a preparar a outra dentro de mim. O bilhete e os documentos que tenho na mala vão levar-me para longe, tão longe da nuvem negra da Europa, que tenho dificuldade em acreditar. Correm rumores sobre a iminente derrota de Hitler, mas também se diz que ele pode invadir a Península Ibérica, nem quero pensar, entre cão e lobo, onde me esconderia? E Sara? Poderia confiar nela? Acho que, pelo menos, não gosta do Salazar, eu bem vejo como muda de expressão quando ele fala na rádio. Mas sei lá se não é para ver como reajo. Não, não pode ser. Triste, tão triste esta velha desconfiada que cresceu dentro de mim.