Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Sarah Epstein – e partiria para Bordéus, onde
conseguiria um visto que me trouxe até Lisboa.
Pára, pára, memória, que não me largas, abriga-te no
buraco negro onde enterrei o coração!
E Sara fita-me, interrogativa, já não baixa os olhos, que
cara terei eu feito sem me dar conta? Cautela, muita
cautela, que eu não sei nada desta rapariga, cada vez
mais parecida com uma parisiense. É linda, por vezes
penso, que tolice, que também ela pode ser judia, mas
não em fuga como eu. Quem é Sara, afinal?)
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Sara
(Está triste, bem vejo, às vezes voa pela janela e só deixa
atrás a sombra a segurar o chapéu. Gostava de lhe dizer
qualquer coisa amigável, pois se já quase conseguimos
falar com meia dúzia de palavras e muitos gestos. Mas
dizer o quê? Nem sequer posso contar-lhe como estou
apaixonada e feliz, seria cruel, agora que sei que vive
sozinha em Lisboa. O que terá deixado em Paris?
Talvez um noivo, ou talvez, que horror, a memória da
família morta na guerra. O António contou-me, ouviu
na BBC que os Alemães estão a matar muitos franceses,
prendem todos os que resistem e todos os judeus,
crianças e tudo, encerrados em campos e mandados
para muito longe.
Como posso saber se ela não estará assim por falta de
notícias, oxalá não seja por uma notícia má. Já gosto
dela, já não tenho acanhamento, é quase uma amiga a
quem gostaria de contar coisas da minha vida. Agora
até tenho vontade de lhe dizer que nasci na Beira Alta,
que fui educada em Lisboa pelos meus tios, desde
pequenina, que a minha mãe morreu e que essa é uma
grande tristeza que não se apaga nunca. Quem sabe se a
mãe dela não morreu também, para estar aqui sozinha,
longe de casa.
Estamos as duas longe de casa.
Levantou-se e foi à janela, parece-me que suspirou, nem
olho. Volta a sentar-se e agora oferece-me um grande
sorriso, até me pareceu desajustado ou ensaiado.
Aponta para o meu vestido, diz “muito elegante” com o
sotaque estrangeiro que me faz sempre sentir dentro de
um filme, respondo, “merci” e, sem pensar, estendo a
minha mão, onde resplandece um losango cravejado de
brilhantes, ai!, irresistivelmente, estou a mostrar-lhe o
meu anel de noivado. Levanta-se outra vez, ah! dá-me
um abraço, o primeiro abraço.)
Camille
(O que eu andei para chegar a horas e não consegui, até
o meu chapéu voou arrastado pelo vento, parece que
decidiu ficar em Lisboa. Um eléctrico e outro eléctrico,
e ruas e degraus e praças e outras ruas e outras praças a
passarem em filme na janela, desfocadas. Na longa
paragem do Rossio, a surpresa da cidade a erguer-se
bela diante de mim e, pela primeira vez, as fulgurações
da calçada são luzes de celebração e não holofotes a
cegar-me sem piedade.
Aqui estou, uma vez mais a preparar a outra dentro de
mim. O bilhete e os documentos que tenho na mala vão
levar-me para longe, tão longe da nuvem negra da
Europa, que tenho dificuldade em acreditar. Correm
rumores sobre a iminente derrota de Hitler, mas
também se diz que ele pode invadir a Península Ibérica,
nem quero pensar, entre cão e lobo, onde me
esconderia?
E Sara? Poderia confiar nela? Acho que, pelo menos,
não gosta do Salazar, eu bem vejo como muda de
expressão quando ele fala na rádio. Mas sei lá se não é
para ver como reajo. Não, não pode ser. Triste, tão triste
esta velha desconfiada que cresceu dentro de mim.