Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
trabalhar melhor do que todos os chapeleiros de Lisboa
juntos. Ela não sabe, mas eu já tinha ouvido falar na
chapeleira parisiense que só trabalha para o corpo
diplomático. Ela é que nunca ouviu falar de mim, nem
sonha que sou uma aldeã abrigada na cidade. É melhor
que não saiba, e como poderia sabê-lo se não
conseguimos falar uma com a outra? Melhor assim, o
que ia ela pensar de mim? Nem sequer ia acreditar que
eu aprendo com os livros, que leio todos os dias até cair
de sono. Os livros são o comboio que me leva a todo o
mundo, os filmes também, é claro, mas os livros, o que
seria eu sem os livros?
Pára de pensar, menina Sara, vê se te concentras no que
estás a fazer, porque agora é que vai ser a sério. Já fixei
os moldes no tecido, já risquei a giz, mas só de pensar
que vou meter a tesoura neste organdi fico nervosa. É
tão difícil trabalhar o organdi, ainda mais combinado
com seda. Também já estava à espera que me dessem
um trabalho assim para me testarem.
Não, não é impressão, ela está triste, porque disfarça e
endireita-se toda quando percebe que eu olho. Ah!
Como é que não pensei nisto antes? Será uma dessas
refugiadas da guerra?)
Camille
(O visto para a América nunca mais chega, que
angústia, e no entanto começo a habituar-me a esta
cidade, que já nem me parece tão acanhada. Quando a
Embaixatriz me propôs acompanhá-la ao jantar no
Estoril, tive medo, há espiões por todo o lado, e numa
festa de anglófilos, é mais certo do que eu me chamar…
Cautela, muita cautela, que até o pensamento pode ser
vigiado. Não, ela não sabe nada. E em todo este ano em
que trabalhámos e almoçámos juntas, nunca aquele
olhar brilhante me deu um sinal de desconfiança.
Ela nem sequer sabe que sou alemã, que fugi para Paris
e que fui acolhida por Madame Yvette. E desconfio que
haveria de gostar de conhecer aquela valente chapeleira
que abriu a pequena “Femme Moderne” quando a Casa
Chanel a despediu e a mim abriu-me a porta para uma
vida totalmente desconhecida. Quando estudava Artes
na universidade de Berlim, sabia lá o que era trabalhar,
mas no dia seguinte à chegada a Paris, já estava no ateliê
de Madame Yvette, a alinhavar chapéus.
Aprendi depressa? Que remédio, em escassos meses já
experimentava desenhar modelos que Madame elogiava
com subtileza. Incentivo ou compaixão? Trabalhava
muito, aqueles dias eram um outro tempo, numa outra
cidade, e eu com outro rosto, sabia-o diariamente, antes
de fechar a porta do quarto alugado. Com cautela, fiz
amigos nas esplanadas de Saint Germain onde bebia
chá a olhar os transeuntes como se nunca tivesse sido
outra, num passado que em sonhos me revisitava –
sombrios pesadelos em que os meus pais eram estátuas
de cinza e eu corria para eles sem sair do mesmo lugar.
Três anos de anestesia. De renascimento?
Não chegou a sê-lo. Os braços pantanosos da hidra
alemã chegaram a França, que escancarou as portas ao
monstro, depois a Paris. Com eles o passado
ressuscitado, o terror, as interdições, a estrela amarela,
faca cravada no meu peito. Corria para o ateliê, apesar
de tudo tranquilizada pela generosidade com que a
cidade me acolhera, mas numa manhã, tão vazia como o
meu coração, o rapaz do segundo andar, que se cruzou
comigo na escada, atirou-me, insolente e maldoso, a
humilhação, “Juive”. Foi a primeira de muitas e a
senhoria, com pesar – nunca saberei se fingido – disse-
me que não podia continuar a alugar-me o quarto.
Madame Yvette tinha conhecimentos, escondeu-me,
trouxe-me documentos falsos – eu nunca mais seria
31