Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 31

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 trabalhar melhor do que todos os chapeleiros de Lisboa juntos. Ela não sabe, mas eu já tinha ouvido falar na chapeleira parisiense que só trabalha para o corpo diplomático. Ela é que nunca ouviu falar de mim, nem sonha que sou uma aldeã abrigada na cidade. É melhor que não saiba, e como poderia sabê-lo se não conseguimos falar uma com a outra? Melhor assim, o que ia ela pensar de mim? Nem sequer ia acreditar que eu aprendo com os livros, que leio todos os dias até cair de sono. Os livros são o comboio que me leva a todo o mundo, os filmes também, é claro, mas os livros, o que seria eu sem os livros? Pára de pensar, menina Sara, vê se te concentras no que estás a fazer, porque agora é que vai ser a sério. Já fixei os moldes no tecido, já risquei a giz, mas só de pensar que vou meter a tesoura neste organdi fico nervosa. É tão difícil trabalhar o organdi, ainda mais combinado com seda. Também já estava à espera que me dessem um trabalho assim para me testarem. Não, não é impressão, ela está triste, porque disfarça e endireita-se toda quando percebe que eu olho. Ah! Como é que não pensei nisto antes? Será uma dessas refugiadas da guerra?) Camille (O visto para a América nunca mais chega, que angústia, e no entanto começo a habituar-me a esta cidade, que já nem me parece tão acanhada. Quando a Embaixatriz me propôs acompanhá-la ao jantar no Estoril, tive medo, há espiões por todo o lado, e numa festa de anglófilos, é mais certo do que eu me chamar… Cautela, muita cautela, que até o pensamento pode ser vigiado. Não, ela não sabe nada. E em todo este ano em que trabalhámos e almoçámos juntas, nunca aquele olhar brilhante me deu um sinal de desconfiança. Ela nem sequer sabe que sou alemã, que fugi para Paris e que fui acolhida por Madame Yvette. E desconfio que haveria de gostar de conhecer aquela valente chapeleira que abriu a pequena “Femme Moderne” quando a Casa Chanel a despediu e a mim abriu-me a porta para uma vida totalmente desconhecida. Quando estudava Artes na universidade de Berlim, sabia lá o que era trabalhar, mas no dia seguinte à chegada a Paris, já estava no ateliê de Madame Yvette, a alinhavar chapéus. Aprendi depressa? Que remédio, em escassos meses já experimentava desenhar modelos que Madame elogiava com subtileza. Incentivo ou compaixão? Trabalhava muito, aqueles dias eram um outro tempo, numa outra cidade, e eu com outro rosto, sabia-o diariamente, antes de fechar a porta do quarto alugado. Com cautela, fiz amigos nas esplanadas de Saint Germain onde bebia chá a olhar os transeuntes como se nunca tivesse sido outra, num passado que em sonhos me revisitava – sombrios pesadelos em que os meus pais eram estátuas de cinza e eu corria para eles sem sair do mesmo lugar. Três anos de anestesia. De renascimento? Não chegou a sê-lo. Os braços pantanosos da hidra alemã chegaram a França, que escancarou as portas ao monstro, depois a Paris. Com eles o passado ressuscitado, o terror, as interdições, a estrela amarela, faca cravada no meu peito. Corria para o ateliê, apesar de tudo tranquilizada pela generosidade com que a cidade me acolhera, mas numa manhã, tão vazia como o meu coração, o rapaz do segundo andar, que se cruzou comigo na escada, atirou-me, insolente e maldoso, a humilhação, “Juive”. Foi a primeira de muitas e a senhoria, com pesar – nunca saberei se fingido – disse- me que não podia continuar a alugar-me o quarto. Madame Yvette tinha conhecimentos, escondeu-me, trouxe-me documentos falsos – eu nunca mais seria 31