Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
UM CHAPÉU
SOB O CÉU DE LISBOA
Elisa Costa Pinto
À memória da minha Mãe.
A nossa relação com o passado é tão misteriosa. E tão
elucidativa. Ela é feita, antes de mais, com o que nunca
existiu.
Vergílio Ferreira, Pensar
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Camille
(Por vezes sou incauta, esqueço-me da personagem que
me cabe representar. Ainda há pouco, quando ela
entrou e me foi apresentada pela Sophia, sobressaltei-
me com o seu nome, Sara, e gaguejei o meu, Camille.
Estamos agora frente a frente, ela risca os moldes de
blusa sobre o azul do organdi, eu prendo a flor de feltro
no feltro do chapéu. É difícil não cruzarmos os olhares,
o dela, tímido, ou receoso, ou apenas doce. Nervoso? O
meu, já recomposto, ensaia a indagação falsamente
desatenta. É bonita, veste com elegante simplicidade,
quem diria, nesta cidade de gente amarrotada, e
percebe-se, na transparência escura dos olhos e na
curva suave da boca, que nunca conheceu o inferno.
Sara, a portuguesa.
Parece que vamos partilhar esta sala de trabalho durante
um tempo que eu quero breve, por favor! por favor!,
que seja breve, mas quanto tempo? Ela nunca saberá
que eu já atravessei o inferno, a palavra “Jude”
arremessada contra o meu rosto, pés descalços sobre
vidros em chamas e uma estrela amarela ao peito.
Nunca saberá que saí de Berlim depois da Kristallnacht
a beber o medo, para a minha mãe e o meu pai não
verem as lágrimas de sangue nos meus olhos. Nunca
saberá do buraco negro onde enterrei o coração,
quando soube que o passado era um lugar de cinzas,
para sempre suprimido.
Foi nos anos de Paris que o espelho engoliu o meu
rosto, até então jovem como o da portuguesa que
começa a oferecer-me um sorriso imperceptível,
daqueles que aprendi a reconhecer, como um
acolhimento, uma aceitação ou uma pena, sobretudo
depois da estrela. Mas esse é também um tempo que
tenho de esquecer, mesmo a tarde chuvosa em que
conheci Madame Yvette, o nome da morada que os
meus pais coseram no forro do meu casaco).
Sara
(Ai que medo de me enganar nos moldes, que medo de
começar a cortar. A tesoura é seta que nunca volta atrás
depois de disparada.
Quem me dera ser como ela, tão segura a manejar a
rosa de feltro, como se fosse a jardineira e a dona do
jardim. Gostava de poder olhar melhor para o seu
vestido, tão bem talhado, nunca vi nada assim, só no
cinema e o cinema é uma ilusão sobre tela, um filme é
como uma peça de tecido vivo, que morre quando foi
desenrolada. Mas eu gosto de cinema, como gosto! Ai,
tenho de me concentrar, esta blusa é um exame e eu
quero ser aprovada. Deixar o ateliê, trabalhar aqui para
a Embaixatriz, aprender, aprender. Aprender!
Ela está a olhar para mim, ai as minhas mãos que não
podem tremer, firmeza, menina Sara, firmeza.
Consegui, os riscos estão direitos, perfeitos, posso dizê-
lo, e as medidas exactas como se uma grande calma me
tivesse guiado a mão. Agora olhámos as duas ao mesmo
tempo, ela é tão séria, eu sorri sem querer e nem
percebi se ela também sorriu ou apenas inclinou a
cabeça.
Parece-me triste, ou os olhos é que são tristes. Há olhos
assim, sempre com cortinas de sombra, mesmo quando
a boca ri. Deve ser impressão, tão elegante, francesa e a