Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 30

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 UM CHAPÉU SOB O CÉU DE LISBOA Elisa Costa Pinto À memória da minha Mãe. A nossa relação com o passado é tão misteriosa. E tão elucidativa. Ela é feita, antes de mais, com o que nunca existiu. Vergílio Ferreira, Pensar 30 Camille (Por vezes sou incauta, esqueço-me da personagem que me cabe representar. Ainda há pouco, quando ela entrou e me foi apresentada pela Sophia, sobressaltei- me com o seu nome, Sara, e gaguejei o meu, Camille. Estamos agora frente a frente, ela risca os moldes de blusa sobre o azul do organdi, eu prendo a flor de feltro no feltro do chapéu. É difícil não cruzarmos os olhares, o dela, tímido, ou receoso, ou apenas doce. Nervoso? O meu, já recomposto, ensaia a indagação falsamente desatenta. É bonita, veste com elegante simplicidade, quem diria, nesta cidade de gente amarrotada, e percebe-se, na transparência escura dos olhos e na curva suave da boca, que nunca conheceu o inferno. Sara, a portuguesa. Parece que vamos partilhar esta sala de trabalho durante um tempo que eu quero breve, por favor! por favor!, que seja breve, mas quanto tempo? Ela nunca saberá que eu já atravessei o inferno, a palavra “Jude” arremessada contra o meu rosto, pés descalços sobre vidros em chamas e uma estrela amarela ao peito. Nunca saberá que saí de Berlim depois da Kristallnacht a beber o medo, para a minha mãe e o meu pai não verem as lágrimas de sangue nos meus olhos. Nunca saberá do buraco negro onde enterrei o coração, quando soube que o passado era um lugar de cinzas, para sempre suprimido. Foi nos anos de Paris que o espelho engoliu o meu rosto, até então jovem como o da portuguesa que começa a oferecer-me um sorriso imperceptível, daqueles que aprendi a reconhecer, como um acolhimento, uma aceitação ou uma pena, sobretudo depois da estrela. Mas esse é também um tempo que tenho de esquecer, mesmo a tarde chuvosa em que conheci Madame Yvette, o nome da morada que os meus pais coseram no forro do meu casaco). Sara (Ai que medo de me enganar nos moldes, que medo de começar a cortar. A tesoura é seta que nunca volta atrás depois de disparada. Quem me dera ser como ela, tão segura a manejar a rosa de feltro, como se fosse a jardineira e a dona do jardim. Gostava de poder olhar melhor para o seu vestido, tão bem talhado, nunca vi nada assim, só no cinema e o cinema é uma ilusão sobre tela, um filme é como uma peça de tecido vivo, que morre quando foi desenrolada. Mas eu gosto de cinema, como gosto! Ai, tenho de me concentrar, esta blusa é um exame e eu quero ser aprovada. Deixar o ateliê, trabalhar aqui para a Embaixatriz, aprender, aprender. Aprender! Ela está a olhar para mim, ai as minhas mãos que não podem tremer, firmeza, menina Sara, firmeza. Consegui, os riscos estão direitos, perfeitos, posso dizê- lo, e as medidas exactas como se uma grande calma me tivesse guiado a mão. Agora olhámos as duas ao mesmo tempo, ela é tão séria, eu sorri sem querer e nem percebi se ela também sorriu ou apenas inclinou a cabeça. Parece-me triste, ou os olhos é que são tristes. Há olhos assim, sempre com cortinas de sombra, mesmo quando a boca ri. Deve ser impressão, tão elegante, francesa e a