Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 13

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 «Vai-te embora, ó preto». A cestinha do mata-bicho caiu no chão. Alguns putos, estimulados com a violência do Becas e com a minha reacção de escravo tímido e constrangido, apupavam e pediam: «Po-rra-da! Po-rra- da! Po-rra-da!» Márcio, furioso, atirou-se ao Becas, esmurrou-o e fê-lo cair. «Vai-te embora», despachou-me. Sentindo-me um cobarde, deixei-o à mercê do Becas e gazelei rua acima. Nada aconteceu nesse dia, mas o rufia continuava a ameaçar Márcio, aproximando-se de súbito com o seu hálito de miúdo maldoso, «Eh pá, estás lixado! Até te rebento a fuça!» Márcio contou ao pai. O Senhor Engenheiro esperou por Becas, um dia, para lhe dizer que não se atrevesse a tocar no filho nem com um dedo. Becas, forte entre os putos, mas sem um pai que se medisse com o Senhor Engenheiro, acobardou-se, repetindo nervosamente: «Era a brincar! Aquilo era tudo a brincar, eu não lhe ia fazer nada!» E nunca mais se meteu com o miúdo. os olhos, fitando o barco. Assisti a tudo. Não durou senão um momento. O menino adeusava-me, como se a sua mãozinha espalhasse fumo, chegou-se à borda e caiu ao mar. Vi a súbita aflição. Márcio vinha a tona de água, mas mal a cabeça assomava à superfície, tornava imediatamente a afundar-se. No barco, ninguém sabia nadar. Nem sequer o Senhor Ribeiro, orgulhoso proprietário da embarcação e do boné de marinheiro. Estavam inertes, horrorizados, e fui eu que, àquela distância, me lancei, vestido, ao mar e nadei com raiva. Percebi que me aproximava, ao ouvir os gritos da menina Mimi e de Dona Almerinda. Mergulhei profundamente, peguei no menino, que já não se debatia, trouxe-o à superfície e arrastei-o até ao barco. Fizeram-no vomitar, massajaram-no. Eu espreitava, com os braços sobre a borda. Este episódio não foi senão um sobressalto no estilo de vida tranquilo dos colonos. De um grupo pequenino de colonos. Uma família. [Lourenço Marques, ouvira eu muitas vezes ao senhor engenheiro, é tudo isto: as acácias vermelhas ao longo das avenidas, os tons únicos do pôr-do-sol, e o mar. E eu pensava, ou sentia mais do que pensava: «O mar que trouxe o menino Márcio». Só muito mais tarde seria, também, o mar que mo tirou]. [A guerra parecia tão irreal em Lourenço Marques, um pesadelo longínquo…]. Certa manhã, um barco minúsculo juntou para um passeio no mar o Senhor Engenheiro, a Dona Almerinda, o Senhor Ribeiro, dono da embarcação, longo de braços e de pernas como um gafanhoto, de boné à marinheiro rolhando a sua cabeça oblonga, o menino Márcio e a Mimi. Eu ficara sentado no areal, de mão em pala a proteger A guerra não era, porém, irreal e nem mesmo longínqua. O Senhor Engenheiro devia saber mais do que dizia. Dona Almerinda talvez nada soubesse, mas o Senhor Engenheiro..? Quando aquela ronceira vida colonial teve de se romper, transpareceu o que se ocultava sob os chás- - canasta, «a voltinha dos tristes», ao domingo, pela Marginal, os passeios até à Costa do Sol ou as férias na Namaacha. E todos vimos. Digo «nós», porque mesmo nós, ou muitos de nós, os que sofríamos na pele negra a desigualdade, ficámos surpreendidos: há diferença entre 13