Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
«Vai-te embora, ó preto». A cestinha do mata-bicho caiu
no chão. Alguns putos, estimulados com a violência do
Becas e com a minha reacção de escravo tímido e
constrangido, apupavam e pediam: «Po-rra-da! Po-rra-
da! Po-rra-da!»
Márcio, furioso, atirou-se ao Becas, esmurrou-o e fê-lo
cair. «Vai-te embora», despachou-me. Sentindo-me um
cobarde, deixei-o à mercê do Becas e gazelei rua acima.
Nada aconteceu nesse dia, mas o rufia continuava a
ameaçar Márcio, aproximando-se de súbito com o seu
hálito de miúdo maldoso, «Eh pá, estás lixado! Até te
rebento a fuça!»
Márcio contou ao pai. O Senhor Engenheiro esperou
por Becas, um dia, para lhe dizer que não se atrevesse a
tocar no filho nem com um dedo. Becas, forte entre os
putos, mas sem um pai que se medisse com o Senhor
Engenheiro, acobardou-se, repetindo nervosamente:
«Era a brincar! Aquilo era tudo a brincar, eu não lhe ia
fazer nada!» E nunca mais se meteu com o miúdo. os olhos, fitando o barco. Assisti a tudo. Não durou
senão um momento. O menino adeusava-me, como se a
sua mãozinha espalhasse fumo, chegou-se à borda e
caiu ao mar. Vi a súbita aflição. Márcio vinha a tona de
água, mas mal a cabeça assomava à superfície, tornava
imediatamente a afundar-se. No barco, ninguém sabia
nadar. Nem sequer o Senhor Ribeiro, orgulhoso
proprietário da embarcação e do boné de marinheiro.
Estavam inertes, horrorizados, e fui eu que, àquela
distância, me lancei, vestido, ao mar e nadei com raiva.
Percebi que me aproximava, ao ouvir os gritos da
menina Mimi e de Dona Almerinda. Mergulhei
profundamente, peguei no menino, que já não se
debatia, trouxe-o à superfície e arrastei-o até ao barco.
Fizeram-no vomitar, massajaram-no. Eu espreitava,
com os braços sobre a borda.
Este episódio não foi senão um sobressalto no estilo de
vida tranquilo dos colonos. De um grupo pequenino de
colonos. Uma família.
[Lourenço Marques, ouvira eu muitas vezes ao senhor
engenheiro, é tudo isto: as acácias vermelhas ao longo
das avenidas, os tons únicos do pôr-do-sol, e o mar. E
eu pensava, ou sentia mais do que pensava: «O mar que
trouxe o menino Márcio». Só muito mais tarde seria,
também, o mar que mo tirou]. [A guerra parecia tão irreal em Lourenço Marques, um
pesadelo longínquo…].
Certa manhã, um barco minúsculo juntou para um
passeio no mar o Senhor Engenheiro, a Dona
Almerinda, o Senhor Ribeiro, dono da embarcação,
longo de braços e de pernas como um gafanhoto, de
boné à marinheiro rolhando a sua cabeça oblonga, o
menino Márcio e a Mimi.
Eu ficara sentado no areal, de mão em pala a proteger
A guerra não era, porém, irreal e nem mesmo
longínqua. O Senhor Engenheiro devia saber mais do
que dizia. Dona Almerinda talvez nada soubesse, mas o
Senhor Engenheiro..?
Quando aquela ronceira vida colonial teve de se
romper, transpareceu o que se ocultava sob os chás- -
canasta, «a voltinha dos tristes», ao domingo, pela
Marginal, os passeios até à Costa do Sol ou as férias na
Namaacha. E todos vimos. Digo «nós», porque mesmo
nós, ou muitos de nós, os que sofríamos na pele negra a
desigualdade, ficámos surpreendidos: há diferença entre
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