Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
sentir as coisas, e delas tomar consciência. Foi um
tempo de libertação e de estranheza. A liberdade é
sempre estranha.
Dona Almerinda sofreu um ataque.
Márcio tinha 17 anos, eu 27. Com o Zé da Maxixe,
fizemo-nos às estradas de Moçambique, sem dinheiro
no bolso e de mochila às costas. Enfiámo-nos pela nova
pátria dentro, para além dos limites da nossa infância. E
do nosso orçamento. Aceitámos boleia de camiões,
trabalhámos em machambas, inventámos histórias –
começara a escrevê-las num caderno –, passámos fome,
cantámos hinos libertários. Estivemos dois longos
meses fora de casa, mas nunca tão próximos. A nossa
casa era Moçambique, inteiro, ou, como se dizia, «do
Rovuma ao Maputo».
Ao regressar, soubemos que Dona Almerinda tivera
um segundo ataque, o qual obrigou a família a pensar
seriamente no retorno a Portugal.
Márcio já não era o “menino Márcio”, mas só
Márcio ou “Camarada Márcio”. Tornara-se parte de
Moçambique, como os óculos de sol eram parte do
rosto da senhora do senhor engenheiro. «Tu vais com
os teus pais?» perguntei-lhe. E ele: «Eu sou
moçambicano, tu sabes.»
Márcio alfabetizava, à noite, na escola do hospital, e
reunia-se regularmente connosco no Grupo
Dinamizador do bairro. Enquanto isso, ali ao lado, os
pais preparavam contentores para transportar para
Portugal a sua parte de Moçambique, a sua vida
moçambicana traduzida em móveis, no carro e no rádio
gira-discos. Márcio não ia. Discutiu com os pais.
Discutiu consigo mesmo. Não podia ir. Estava com 18
anos, a sua partida seria um roubo a Moçambique.
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[Nada nele se conjugava com um retornado em
balalaica, pelas ruas de Lisboa ou de Vila Nova de
Famalicão, sentado por cafés, com os olhos baços de
passado, brilhando ocasionalmente ao incendiar das
memórias: «Ah, aquilo é que era vida! As praias? O céu?
Os montes Libombos, a Inhaca? Os tugas sabem lá!
Não percebem nada de África!»]
Dona Almerinda sofreu novo ataque. E Márcio teve
de partir num dos derradeiros paquetes. [Com o
alargamento do “retorno”, dali a pouco o modo
adoptado passaria a ser o avião, que não deixava perder
tempo entre o desfazer de uma vida e o refazer de
outra]. Não nos despedimos. No dia da partida não saí
de casa, surdo aos toques de telefone. Imaginei-me a
subir ao barco grande, para resgatar uma vez mais o
puto ao mar.
Dizem-me ainda, bastantes anos depois: «Mas ele
pode voltar. Como pode o Camarada jurar que ele não
volta?» Sei que, ainda que isso venha a acontecer, já não
será o mesmo Márcio. Renasceu algures. Ou estarei
enganado? E será que, onde quer que viva, nas ruas de
Lisboa ou de Vila Nova de Famalicão, esse provável
Senhor Engenheiro em que o filho do Senhor
Engenheiro se poderá ter transformado, também
grisalho, também magro e branco, como seu pai, se
lembrará de mim? Do dia em que me defendeu? Do dia
em que o salvei? Saberá, onde quer que passe os dias,
que será sempre um moçambicano? Ou estarei
enganado?