Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 14

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 sentir as coisas, e delas tomar consciência. Foi um tempo de libertação e de estranheza. A liberdade é sempre estranha. Dona Almerinda sofreu um ataque. Márcio tinha 17 anos, eu 27. Com o Zé da Maxixe, fizemo-nos às estradas de Moçambique, sem dinheiro no bolso e de mochila às costas. Enfiámo-nos pela nova pátria dentro, para além dos limites da nossa infância. E do nosso orçamento. Aceitámos boleia de camiões, trabalhámos em machambas, inventámos histórias – começara a escrevê-las num caderno –, passámos fome, cantámos hinos libertários. Estivemos dois longos meses fora de casa, mas nunca tão próximos. A nossa casa era Moçambique, inteiro, ou, como se dizia, «do Rovuma ao Maputo». Ao regressar, soubemos que Dona Almerinda tivera um segundo ataque, o qual obrigou a família a pensar seriamente no retorno a Portugal. Márcio já não era o “menino Márcio”, mas só Márcio ou “Camarada Márcio”. Tornara-se parte de Moçambique, como os óculos de sol eram parte do rosto da senhora do senhor engenheiro. «Tu vais com os teus pais?» perguntei-lhe. E ele: «Eu sou moçambicano, tu sabes.» Márcio alfabetizava, à noite, na escola do hospital, e reunia-se regularmente connosco no Grupo Dinamizador do bairro. Enquanto isso, ali ao lado, os pais preparavam contentores para transportar para Portugal a sua parte de Moçambique, a sua vida moçambicana traduzida em móveis, no carro e no rádio gira-discos. Márcio não ia. Discutiu com os pais. Discutiu consigo mesmo. Não podia ir. Estava com 18 anos, a sua partida seria um roubo a Moçambique. 14 [Nada nele se conjugava com um retornado em balalaica, pelas ruas de Lisboa ou de Vila Nova de Famalicão, sentado por cafés, com os olhos baços de passado, brilhando ocasionalmente ao incendiar das memórias: «Ah, aquilo é que era vida! As praias? O céu? Os montes Libombos, a Inhaca? Os tugas sabem lá! Não percebem nada de África!»] Dona Almerinda sofreu novo ataque. E Márcio teve de partir num dos derradeiros paquetes. [Com o alargamento do “retorno”, dali a pouco o modo adoptado passaria a ser o avião, que não deixava perder tempo entre o desfazer de uma vida e o refazer de outra]. Não nos despedimos. No dia da partida não saí de casa, surdo aos toques de telefone. Imaginei-me a subir ao barco grande, para resgatar uma vez mais o puto ao mar. Dizem-me ainda, bastantes anos depois: «Mas ele pode voltar. Como pode o Camarada jurar que ele não volta?» Sei que, ainda que isso venha a acontecer, já não será o mesmo Márcio. Renasceu algures. Ou estarei enganado? E será que, onde quer que viva, nas ruas de Lisboa ou de Vila Nova de Famalicão, esse provável Senhor Engenheiro em que o filho do Senhor Engenheiro se poderá ter transformado, também grisalho, também magro e branco, como seu pai, se lembrará de mim? Do dia em que me defendeu? Do dia em que o salvei? Saberá, onde quer que passe os dias, que será sempre um moçambicano? Ou estarei enganado?