Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 12

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 12 em que medida podiam confiar em mim. Eu fazia disparates e a minha imaginação nem sempre era isenta de perigos. Na noite de uma grande festa, mandaram- me deitar o menino Márcio. Pu-lo na cama, mas o garoto queria luz. Liguei o candeeiro pequeno, na mesa- de-cabeceira, enrolando uma toalha sobre o abajur, para que a luz se tornasse uma vaga respiração do escuro. «Está bem assim, menino Márcio?» Márcio adormecera, apesar dos risos que nos chegavam de baixo. Acordei sobressaltado, com o Senhor Engenheiro e a Dona Almerinda a sacudirem-me: a toalha aquecera excessivamente e pegara fogo. Havia chamas e fumo cinzento. O Senhor Engenheiro pegou na toalha, com um “Ah” de dor, atirou-a ao chão e pisou-a, repetidamente, até apagar o fogo. «O preto tem cabeça, mas é um miúdo». Nunca me deixavam levar sozinho o menino à praia. Eu tinha pena, porque Márcio, na praia, virava um habitante do mar, um elemento da flora e da fauna marinhas. Entrava na água sem medo e ali ficava sentado, radiante. Aos fins-de-semana, íamos todos: o Senhor Engenheiro, que conduzia o automóvel, a Dona Almerinda, ao lado, de óculos escuros, eu atrás, com o menino ao colo, mais as meninas Mimi e Mitó. O Senhor Engenheiro, de cabelo grisalho, muito magro e branco no seu calção de banho, dizia: «Não há como as águas do abençoado Índico. Na metrópole, não se conhece esta temperatura de água. Garantiam- me: 'Ó Senhor Engenheiro, ai, e tal, venha connosco, venha connosco a uma praia do Algarve, que vai ver o que é água quente'. Eu confiava. Mas mal metia o pé no mar, parecia que apanhava um choque eléctrico. Na metrópole não fazem ideia do que é água quente.» Em cada gesto, em cada palavra, em cada observação, em cada ideia do Senhor Engenheiro, se percebia o quanto ele se prendera a Moçambique. Passeava pela beira-mar, muito esquelético, uma concavidade no peito, a pele branca, como a das alforrecas que ia evitando, e sem pêlos. Naquela altura, o oceano Índico não era senão a água quente e boa que o trouxera. Quando Márcio foi para a escola – os meninos brancos entravam aí pelos 7 anos –, encarregaram-me de lhe levar todas as manhãs, no intervalo do mata-bicho, o leite e o pãozinho com manteiga. E eu ia, descalço, mas com uma fardinha muito limpa. O menino começava a ler e eu tinha imensa vontade de também aprender. Márcio sentava-se comigo no seu quarto, mostrava-me as letras, e eu espantava-me perante o sagrado segredo de as mudar em sons, sílabas e palavras. Ele gostava de fazer de professor. Às vezes ralhava-me, outras vezes dizia “muito bem”, mas a minha aplicação era sempre a mesma, inquebrável. Ofereceu-me um caderno, lápis, borrachas, uma capa em pele, com a efígie de Luís de Camões em relevo. Ensinou-me catequese e números. Eu sentava-me, depois, na minha cama, no quarto que partilhava com dois criados, a decifrar aqueles sinais que ganhavam voz. Os meus livros de adolescência foram, assim, os livros de leitura do menino e a Bíblia. Na 2.ª classe de Márcio, continuava a levar-lhe o mata- bicho das dez horas. O ritual do pão e do leite era observado por um bando de miúdos. Nesse bando havia Becas, um rufia. Alto e entroncado para os seus 9 anos, temido pelos demais, prometendo murros e pontapés a quem não fizesse os trabalhos por ele, ou não lhe oferecesse dinheiro, mirava-me com os olhos verdes, afiados. Um dia disse-me: «Faz-me cá uma raiva, este preto de merda, todo bem vestido!». E empurrou- me.