Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
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em que medida podiam confiar em mim. Eu fazia
disparates e a minha imaginação nem sempre era isenta
de perigos. Na noite de uma grande festa, mandaram-
me deitar o menino Márcio. Pu-lo na cama, mas o
garoto queria luz. Liguei o candeeiro pequeno, na mesa-
de-cabeceira, enrolando uma toalha sobre o abajur, para
que a luz se tornasse uma vaga respiração do escuro.
«Está bem assim, menino Márcio?» Márcio adormecera,
apesar dos risos que nos chegavam de baixo. Acordei
sobressaltado, com o Senhor Engenheiro e a Dona
Almerinda a sacudirem-me: a toalha aquecera
excessivamente e pegara fogo. Havia chamas e fumo
cinzento. O Senhor Engenheiro pegou na toalha, com
um “Ah” de dor, atirou-a ao chão e pisou-a,
repetidamente, até apagar o fogo. «O preto tem cabeça,
mas é um miúdo».
Nunca me deixavam levar sozinho o menino à praia. Eu
tinha pena, porque Márcio, na praia, virava um
habitante do mar, um elemento da flora e da fauna
marinhas. Entrava na água sem medo e ali ficava
sentado, radiante. Aos fins-de-semana, íamos todos: o
Senhor Engenheiro, que conduzia o automóvel, a Dona
Almerinda, ao lado, de óculos escuros, eu atrás, com o
menino ao colo, mais as meninas Mimi e Mitó.
O Senhor Engenheiro, de cabelo grisalho, muito
magro e branco no seu calção de banho, dizia: «Não há
como as águas do abençoado Índico. Na metrópole,
não se conhece esta temperatura de água. Garantiam-
me: 'Ó Senhor Engenheiro, ai, e tal, venha connosco,
venha connosco a uma praia do Algarve, que vai ver o
que é água quente'. Eu confiava. Mas mal metia o pé no
mar, parecia que apanhava um choque eléctrico. Na
metrópole não fazem ideia do que é água quente.»
Em cada gesto, em cada palavra, em cada observação,
em cada ideia do Senhor Engenheiro, se percebia o
quanto ele se prendera a Moçambique. Passeava pela
beira-mar, muito esquelético, uma concavidade no peito,
a pele branca, como a das alforrecas que ia evitando, e
sem pêlos. Naquela altura, o oceano Índico não era
senão a água quente e boa que o trouxera.
Quando Márcio foi para a escola – os meninos brancos
entravam aí pelos 7 anos –, encarregaram-me de lhe
levar todas as manhãs, no intervalo do mata-bicho, o
leite e o pãozinho com manteiga. E eu ia, descalço, mas
com uma fardinha muito limpa.
O menino começava a ler e eu tinha imensa vontade de
também aprender. Márcio sentava-se comigo no seu
quarto, mostrava-me as letras, e eu espantava-me
perante o sagrado segredo de as mudar em sons, sílabas
e palavras. Ele gostava de fazer de professor. Às vezes
ralhava-me, outras vezes dizia “muito bem”, mas a
minha aplicação era sempre a mesma, inquebrável.
Ofereceu-me um caderno, lápis, borrachas, uma capa
em pele, com a efígie de Luís de Camões em relevo.
Ensinou-me catequese e números. Eu sentava-me,
depois, na minha cama, no quarto que partilhava com
dois criados, a decifrar aqueles sinais que ganhavam
voz. Os meus livros de adolescência foram, assim, os
livros de leitura do menino e a Bíblia.
Na 2.ª classe de Márcio, continuava a levar-lhe o mata-
bicho das dez horas. O ritual do pão e do leite era
observado por um bando de miúdos. Nesse bando
havia Becas, um rufia. Alto e entroncado para os seus 9
anos, temido pelos demais, prometendo murros e
pontapés a quem não fizesse os trabalhos por ele, ou
não lhe oferecesse dinheiro, mirava-me com os olhos
verdes, afiados. Um dia disse-me: «Faz-me cá uma raiva,
este preto de merda, todo bem vestido!». E empurrou-
me.