Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Índico
Nuno Vaz
Márcio chegou num paquete. Um barco que não cabia
no nosso olhar todo de uma vez. Era, se não me
engano, o Príncipe Perfeito, nessa época em que as
pessoas faziam viagens morosas, como se todo o
universo fosse tempo e mar. Nunca tinha sentido que
alguém me tivesse sido trazido pelo mar. Aconteceu
com Márcio. [Talvez me seja tão nítida a ideia de que o
mar mo deu, porque o mar mo levou, também].
Era um garoto de 5 anos, filho do Senhor Engenheiro
que vinha trabalhar nas Obras Públicas, e de Dona
Almerinda, uma senhora que usava óculos de sol como
se fizessem parte indesmontável do seu rosto.
Eu tinha 15 anos. Meu pai era afilhado do Senhor
Engenheiro e, por isso, o Senhor Engenheiro levou--me
para sua casa. Não me pagavam: ofereciam-me comer e
dormir. Exigiam-me apenas que tomasse conta do
menino Márcio. Brincava com ele, transformava-lhe os
brinquedos em outros mais divertidos, com uma
esfuziante imaginação que espantava o Senhor
Engenheiro: «Este preto tem cabeça.» Eu passeava com
o menino pelo bairro. Conhecia bem os limites da nossa
pátria, até onde nos podíamos aventurar. E
aventurávamo-nos até à cantina do monhé, onde o
sentava nas sacas de arroz, a comer bolachas ou a tocar
tambor em latas, enquanto eu jogava matraquilhos com
a malta. O Ajit, filho do monhé, o Juca, que viria a
tornar-se um grande jogador de futebol na metrópole, o
Massinga e o Zé da Maxixe eram os meus
companheiros de jogo. Ou então íamos ver os
escoteiros descer por uma rampa, em carrinhos de
rolamentos.
O mais engraçado, porém, era o modo como eu
transportava o menino Márcio de um lado para o outro.
Primeiro, empurrava-o no triciclo, mas tinha colocado,
junto aos pedais, uma metralhadora de pilhas. Entalara
uma pedra sobre o gatilho, que o premia
continuamente, fazendo com que a metralhadora
disparasse o seu taquetaquetaquetaquetaque ao longo de
todo o percurso, como se fosse o tubo de escape de
uma mota. O Senhor Engenheiro louvou-me o
engenho. «Este preto tem cabeça». A senhora fixou-me
com os óculos escuros num inexpressivo elogio.
Mas isto não durou muito. Um dia, quando íamos no
passeio a grande velocidade, eu empurrando o triciclo
por ali fora, taquetaquetaquetaquetaque, um senhor
branco, de óculos de massa e balalaica, mandou-nos
parar. Parei, orgulhoso. Inesperadamente, o senhor
ralhou, obrigando-me a tirar a metralhadora: «Isto é
uma arma, não é um tubo de escape. Serve para o
menino brincar às guerras, não serve para fingir de
mota». Arrancou a pedra que premia o gatilho e atirou-a
para longe: «Esta merda tem pilhas. As pilhas gastam-se,
percebeste? Is-to gas-tá-pi-lha!»
Regressámos, cabisbaixos.
Resolvi reinventar o universo: esventrei uma casa de
bonecas gigante. Fiz da casa de bonecas o invólucro do
triciclo, a carroçaria de um automóvel lindo, a que nada
faltava. Havia até um volante com uma ventosa, que eu
ajustara ao interior do veículo. Tornei-me uma espécie
de chofer, empurrando euforicamente o novo carro do
menino Márcio.
O Senhor Engenheiro comprou-lhe um boné de
«chofer de praça», como dizia. Há fotografias: o menino
acenando, de boné na cabeça, do interior do veículo, ou
como orgulhoso condutor, posando com o seu rolls-
royce. Numa fotografia, estou eu. Ao fundo, à margem,
quase em parte alguma, como uma sombra. Por vezes, o
Senhor Engenheiro e a Dona Almerinda não sabiam
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