Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 11

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 Índico Nuno Vaz Márcio chegou num paquete. Um barco que não cabia no nosso olhar todo de uma vez. Era, se não me engano, o Príncipe Perfeito, nessa época em que as pessoas faziam viagens morosas, como se todo o universo fosse tempo e mar. Nunca tinha sentido que alguém me tivesse sido trazido pelo mar. Aconteceu com Márcio. [Talvez me seja tão nítida a ideia de que o mar mo deu, porque o mar mo levou, também]. Era um garoto de 5 anos, filho do Senhor Engenheiro que vinha trabalhar nas Obras Públicas, e de Dona Almerinda, uma senhora que usava óculos de sol como se fizessem parte indesmontável do seu rosto. Eu tinha 15 anos. Meu pai era afilhado do Senhor Engenheiro e, por isso, o Senhor Engenheiro levou--me para sua casa. Não me pagavam: ofereciam-me comer e dormir. Exigiam-me apenas que tomasse conta do menino Márcio. Brincava com ele, transformava-lhe os brinquedos em outros mais divertidos, com uma esfuziante imaginação que espantava o Senhor Engenheiro: «Este preto tem cabeça.» Eu passeava com o menino pelo bairro. Conhecia bem os limites da nossa pátria, até onde nos podíamos aventurar. E aventurávamo-nos até à cantina do monhé, onde o sentava nas sacas de arroz, a comer bolachas ou a tocar tambor em latas, enquanto eu jogava matraquilhos com a malta. O Ajit, filho do monhé, o Juca, que viria a tornar-se um grande jogador de futebol na metrópole, o Massinga e o Zé da Maxixe eram os meus companheiros de jogo. Ou então íamos ver os escoteiros descer por uma rampa, em carrinhos de rolamentos. O mais engraçado, porém, era o modo como eu transportava o menino Márcio de um lado para o outro. Primeiro, empurrava-o no triciclo, mas tinha colocado, junto aos pedais, uma metralhadora de pilhas. Entalara uma pedra sobre o gatilho, que o premia continuamente, fazendo com que a metralhadora disparasse o seu taquetaquetaquetaquetaque ao longo de todo o percurso, como se fosse o tubo de escape de uma mota. O Senhor Engenheiro louvou-me o engenho. «Este preto tem cabeça». A senhora fixou-me com os óculos escuros num inexpressivo elogio. Mas isto não durou muito. Um dia, quando íamos no passeio a grande velocidade, eu empurrando o triciclo por ali fora, taquetaquetaquetaquetaque, um senhor branco, de óculos de massa e balalaica, mandou-nos parar. Parei, orgulhoso. Inesperadamente, o senhor ralhou, obrigando-me a tirar a metralhadora: «Isto é uma arma, não é um tubo de escape. Serve para o menino brincar às guerras, não serve para fingir de mota». Arrancou a pedra que premia o gatilho e atirou-a para longe: «Esta merda tem pilhas. As pilhas gastam-se, percebeste? Is-to gas-tá-pi-lha!» Regressámos, cabisbaixos. Resolvi reinventar o universo: esventrei uma casa de bonecas gigante. Fiz da casa de bonecas o invólucro do triciclo, a carroçaria de um automóvel lindo, a que nada faltava. Havia até um volante com uma ventosa, que eu ajustara ao interior do veículo. Tornei-me uma espécie de chofer, empurrando euforicamente o novo carro do menino Márcio. O Senhor Engenheiro comprou-lhe um boné de «chofer de praça», como dizia. Há fotografias: o menino acenando, de boné na cabeça, do interior do veículo, ou como orgulhoso condutor, posando com o seu rolls- royce. Numa fotografia, estou eu. Ao fundo, à margem, quase em parte alguma, como uma sombra. Por vezes, o Senhor Engenheiro e a Dona Almerinda não sabiam 11