Detectives Selvagens 0 - Julho 2014 | Page 48

LOURENÇO BRAY assim, depender do sabão macaco e lavar-me no lavatório da cela do que frequentar os chuveiros colectivos. A minha cela é fechada, quase completamente selada por quatro paredes. Com o tecto e o chão, são seis as superfícies isoladoras de liberdade. Tem apenas uma pequena janela quadrada virada para o exterior, sem vidros e com grades. Posso meter-me em bicos de pés, agarrar as grades e içar-me um pouco, para poder ver lá para fora e apanhar ar fresco, mas não vale a pena o esforço. Só dá para ver um gradeamento do género desinteressante, alto, uniforme, com um novelo de arame farpado no topo que lembra um velho campo de concentração. Vejo também, por entre os espessos novelos de arame farpado, a copa das árvores da Mata de Monsanto e bocados de Lisboa, inclusive do estádio da Luz. Consigo ouvir os golos, quando o vento está de leste. Não sei que jogos são, aqui no isolamento não tenho acesso a jornais desportivos. Nem sequer sei quando vai haver jogo ou se está a decorrer um e por isso fico sempre muito surpreendido quando de repente, às nove da noite de um sábado, oiço o bruaaaá de milhares de pessoas a gritar golo e depois silêncio, um silêncio profundo, como tivesse sido um espírito a sussurrar um segredo e depois a desaparecer numa rajada de vento. Um prisioneiro que esteve aqui antes esgravatou uma inscrição no estuque da parede por cima da cama: destruam 48