CULT 167 CULT 167 - ABR 2012 | Page 9

francesa de 1830.

Mas, quando inicia sua carreira como jornalista, no começo da década de 1940, Clarice se depara com uma realidade diferente daquela de Aluísio Azevedo e José de Alencar.

Com a crescente industrialização, passou a ser exigido do homem de letras que, em vez de ficção, escrevesse repor-tagens, fizesse entrevistas, corrigisse o texto dos repórteres, editasse páginas e chefiasse redações.

Além disso, alguns anos após seu início na redação de um jornal, ela pre-sencia outras relevantes mudanças no jornalismo brasileiro: a importação de técnicas jornalísticas norte-americanas em meados da década de 1940 e, por conseguinte, o lançamento do primei-ro manual de redação, em 1950, pelo. Diário Carioca.

Contra esse tipo de jornalismo, Nelson Rodrigues escreve a crônica "Os idiotas da objetividade", em que vitupera: "Na velha imprensa as manchetes chora-vam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos".

Todavia, em nenhum dos textos jor-nalísticos, nem mesmo nas primeiras reportagens, Clarice deixa de se emo-cionar com o leitor. Tanto nas crônicas quanto nas colunas femininas, ainda que sob pseudônimos, escreve para um leitor que admite amar, mesmo que des-tituído de comunicação profunda.

Tal escrita molda igualmente as en-trevistas que realizou.

"Sou curiosa"

"Gosto de pedir entrevista — sou curiosa. E detesto dar entrevistas, elas me deformam", escreveu certa vez. Sua curiosidade rendeu interessantes e pe-culiares diálogos nas revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente.

Em entrevista concedida à pesquisa-dora Aparecida Maria Nunes, pioneira nos estudos sobre a Clarice jornalista, Zevi Guivelder, chefe de redação da Manchete durante os anos em que a es-critora colaborou para a revista, lembra que ela "não tinha cabeça jornalística", que não era e nunca havia sido jornalista, não tinha o "enfoque jornalístico das coisas".

De fato, não há enfoque jornalístico

nas perguntas inusitadas, como "O que é o amor?", "Qual a coisa mais impor-tante do mundo?", "Qual a coisa mais importante para uma pessoa como indi-víduo?", recorrentes em suas entrevistas.

Apesar de seguir o formato padrão estipulado pelas duas revistas, no es-tilo pingue-pongue, seus diálogos se diferenciavam das demais entrevistas. Dos seus entrevistados, desde a canto-ra Maysa ao campeão de caça subma-

rina Bruno Hermany, ela explora o ser humano, misterioso para si mesmo, e não mais a celebridade, rentável aos periódicos.

A entrevista com o primeiro figuri-no do país, Tereza Souza Campos, deno-ta o tom dos diálogos, mormente quan-do lhe é perguntado "O que você é?", ao que Clarice escreve: "Ela ri, repete: `o que é que eu sou?'. Longuíssimo tem-po se passa: a pergunta, além de ines-perada, é realmente difícil de respon-der. Sobretudo se a pessoa mergulhar dentro de si para encontrar a resposta. Parece que isso aconteceu com Tereza: seu olhar tomou-se profundo e, embora de olhos abertos, eles estavam virados para dentro".

À cantora Maysa, Clarice pede uma autodefinição: "Como é que você define Maísa?". E a cantora responde de pron-to: "Uma pessoa essencialmente boa de coração, bastante insegura, mas já a caminho do encontro. Nunca fiz meu autorretrato".

A Clarice, o físico Mário Schenberg

por uns instantes de olhos fechados. A impressão que dá é de que, a cada per-gunta, ele se consulta antes".

Ela induz o entrevistado a "olhar para dentro", a aprofundar-se no pró-prio ser, exigindo um maior contato consigo mesmo. Se na maiêutica so-crática a meta é atingir a verdade inata ao ser, as perguntas formuladas por ela, por sua vez, conduzem seu interlocutor a sua própria subjetividade, exigindo dele uma reflexão mais profunda so-bre si próprio. Por meio do diálogo, alcança-se a "a terceira perna".

É imperativo assinalar a impor-tância das entrevistas diagramadas nas revistas, pois revelam muito mais dos diálogos do que aquelas editadas nos livros Entrevistas/Clarice Lispector e De Corpo Inteiro. Dos erros de edição (que muitas vezes indicavam as respos-tas dos entrevistados como perguntas da entrevistadora, a confundir o sujei-to da fala) à grafia anterior à reforma ortográfica de 1971, passando pelos er-ros cometidos pela própria Clarice

procura se acertar com algo que toque a ideia fugidia do amor: "É urna dessas coisas que não se pode explicar em pa-lavras. O amor não é puramente emo-cional. É mais profundo do que isso. Acho que o sentimento do dever é uma das formas mais altas de amor porque é uma das coisas que mais nos ligam uns aos outros", responde por fim, ao que a entrevistadora observa: "Ele fechara os olhos enquanto falava e continuou

"Maísa, que conselho daria a uma jovem que caísse na depressão como você caiu?"