CULT 167 CULT 167 - ABR 2012 | Page 8

Debruçar-se sobre a obra de Clarice Lispector é se defrontar com um traba-lho plural, que não apenas se limita às páginas dos livros, mas se inscreve nos espaços fixos de jornais e revistas.

Essa versatilidade se deve ao outro ofício da escritora: o de jornalista. Antes mesmo de publicar seu livro de estreia, Perto do Coração Selvagem, ela já havia sido registrada profissionalmente como repórter pelo jornal A Noite, em 1943.

Sua produção na área é vasta, abrange desde reportagens e crônicas até colunas femininas. Entre as inúme-ras colaborações para jornais e revistas, sobressai-se um determinado tipo de material que, em decorrência do cará-ter híbrido, difere de seus demais textos.

Trata-se das 83 entrevistas reali-zadas para as revistas Manchete - na seção "Diálogos possíveis com Clarice Lispector", com 59 entrevistas entre maio de 1968 e outubro de 1969 - e Fatos e Fotos/Gente, com 24 entrevistas realizadas entre dezembro de 1976 e outubro de 1977.

"Gosto de pedir entrevista; mas detesto dar entrevista, elas me deformam"

A singularidade das entrevistas re-side, sobretudo, na forma: o diálogo. Enquanto nos demais textos Clarice privilegia os monólogos interiores e as digressões, nas entrevistas o texto se inscreve pelas falas do entrevistador e do entrevistado.

Convém salientar que Tom Wolfe, ao atacar os romancistas da déca-da de 1940 e 1950 e enaltecer o New Journalism, priorizava justamente o

uso do diálogo:

"Os escritores de revista, assim co-mo os primeiros romancistas, apren-deram por tentativa e erro algo que desde então tem sido demonstrado em estudos acadêmicos: especificamente, que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro recurso. Ele também estabelece e define o personagem mais depressa e com mais eficiência do que qualquer outro recurso. [...] Os jornalistas traba-lhavam o diálogo em sua mais plena e mais completamente reveladora forma no mesmo momento em que os roman-cistas o eliminavam, usando o diálogo de maneira cada vez mais crítica, estra-nha e curiosamente abstrata."

Com efeito, nas entrevistas, Clarice trabalha com o diálogo na sua mais plena e reveladora forma; contudo, é possível observar que a autora de Água Viva aproxima-se em muitos aspectos da entrevistadora, nas revistas da Bloch Editores. Fica evidente nas entrevistas a escritura de uma romancista da década

"Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua litera-tura. Guardadíssimas as devidas e sig-nificativas proporções, era isto o que eu ambicionaria para mim também, se ti-vesse fôlego. [...] Outro problema: num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato com ninguém. Ou mesmo sem compro-misso nenhum. [...] E o leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isto simplesmente porque 'jornal é para ser entendido'. Não há dúvida, porém, de que eu valorizo muito mais o que escre-vo em livros do que o que escrevo para jornais - isso sem, no entanto, deixar de escrever com gosto para o leitor de jornal e sem deixar de amá-lo."

Nota-se aqui que a cronista contro-verte seu ofício como jornalista, sobre-tudo quando atribui ao público o obs-táculo à escrita, afinal o jornal é para ser entendido, e o leitor de jornal está habituado a ler sem dificuldade o jornal.

De fato, é de se questionar como a escritora que escreve para "leitores de alma já formada" - em suas próprias pa-lavras, no prefácio de A Paixão Segundo G.H. - também escreve ao leitor de jor-nal sem deixar de amá-lo.

Por outro lado, é inegável que a es-critora, quando da publicação da crôni-ca, já mantenha um diálogo duradouro, de quase três décadas, com o tal leitor de jornal.

Como já se disse, antes de ter seu primeiro livro publicado, ela já traba-lhava como jornalista para A Noite, seguindo os passos de muitos de seus colegas escritores.

É interessante ressaltar que, por muito tempo, foi reservado às primei-ras páginas dos jornais o exercício da narrativa ficcional, aproximando, assim, jornalismo e literatura.

Boa parte da obra de Balzac, Alexandre Dumas, Machado de Assis, entre outros célebres escritores do sé-culo 19, foi publicada inicialmente em jornal diário sob o formato de roman-ces seriados - os folhetins, como os tornou conhecidos Émile de Girardin e seu ex-sócio, Dutacq, após a revolução

de 1940, em detrimento da jornalista da década de 1960.

Logo, antes de se analisar a entre-vistadora, há que se compreender a escritora jornalista, ou melhor, o quanto existe de jornalista na escritora.

O leitor de jornal

Em 29 de julho de 1972 sai no Jornal do Brasil sua crônica "Escrever para jor-nal e escrever livro", onde escreve:

DOSSIÊ