Se a crença contemporânea nos poderes mágicos do esporte não estabelece relação com esse passado imperial-colonialista, em que se baseiam noções como esporte para o desenvolvimento e a paz ou de combate ao racismo mediante punições e práticas de persuasão?
A utopia olímpica da “colonização esportiva” da África, defendida nos anos 1920 pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e entusiasticamente incentivada por Coubertin, visava à integração dos nativos ao sistema de práticas esportivas moderno não só como forma de reconfiguração da gestualidade autóctone, mas como estratégia de atenuar tensões decorrentes do regime colonial. As administrações coloniais temiam que as práticas esportivas entre os nativos, especialmente as coletivas, pudessem inspirar noções tais como a vitória da raça dominada contra a raça dominante. Contrariando o pessimismo colonial, Coubertin defenderia que a disseminação das práticas esportivas entre os nativos de fato produziria “efeitos calmantes”, cabendo às administrações coloniais a adoção de estratégias adequadas, tais como a priorização das modalidades esportivas individuais, “à exceção da esgrima”, conforme ponderou o barão francês (COUBERTIN, 2015).
A história da disseminação do modelo esportivo moderno na primeira metade do século XX nos mostra um Movimento Olímpico Internacional bastante interessado em colaborar com o colonialismo e pensar, a partir do esporte, a questão das raças. Tanto que a questão do “tormento da alma africana” se tornaria pauta de uma reunião do COI no Capitólio Romano, em 1923. Ocasião em que um palestrante, cujo nome não é identificado, exortou os presentes com os seguintes dizeres:
[...] Reflitamos, no entanto, sobre o tormento da alma africana. Forças latentes, preguiça individual e uma espécie de necessidade coletiva de ação; rancores sem fim, invejas contra o homem branco e, no entanto, vontade de imitá-lo [...] Estas, precisamente, têm recebido grandes benefícios do esporte, que as têm fortalecido e lhes têm proporcionado o gozo saudável da aplicação muscular [...] Mas se o esporte dá forças, também tranquiliza e tonifica. Fazendo dele um meio e não um fim, nos proporciona equilíbrio e ilumina nossa mente. Não duvidemos, portanto, em entregar-lhe sua parte africana (COUBERTIN, 2015, p. 490).
A autoria do texto, de fato, não importa tanto quanto o seu registro no contexto de uma reunião do COI. Ele ilustra com riqueza de detalhes a forma como a disseminação do esporte moderno esteve, como ainda está, associada à interpretações racializadas do mundo. A força residual desse projeto pode ser empiricamente verificada na forma como os Estados ocupados com a cultura corporal de movimento reduzem suas políticas redistributivas ao regime das práticas esportivas modernas e a objetivos de “desenvolvimento” desconectados das razões históricas e geopolíticas do subdesenvolvimento. A disseminação intransigente do esporte moderno, conforme identificam Brohm, Perelman e Vassort (2004) aglutinou o mundo em torno de um conjunto de agendas e regramentos que, à semelhança do processo de “destruição criadora”, contribuiu para o desaparecimento e/ou marginalização de uma fortuna imensa de técnicas corporais potencialmente rebeldes à dominação de classe, ao trabalho abstrato e à forma da mercadoria. As práticas corporais dos povos colonizados eram classificadas por Coubertin, mas não só ele, como de “menor valor”, descartáveis à luz do