Contemporânea Contemporânea #11 | Page 20

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RACISMO NO ESPORTE

manifestações, além da sua autolegitimidade. Por exemplo, nem todos os capoeiras são a favor de que ela se torne um esporte olímpico ou mesmo que haja competições no seu contexto. Isto é, alguns dos agentes que praticam tais manifestações são adeptos a diversas modificações ou posturas que as adaptem para um melhor deleite por outras camadas sociais e “raciais”, mesmo que isso vá de encontro a certas estruturas ditas tradicionais àquela manifestação.

Não basta existir para si, mas deve-se existir para outros na eterna subjugação utópica pelo próprio crivo (de si mesmo) e externo (do outro). É nesse contexto social e interno (sujeito e manifestação cultural) que a capoeira deve ser legitimada e que se legitima. Como manifestação cultural, atesta a coexistência de outras práticas de diferentes matizes e/ou matrizes, mas, também, que se autoestruturam a partir da (re)invenção das tradições [2] dos povos africanos aqui escravizados e denominados de negros.

Dito isso, a denominação manifestação cultural dos negros fortalece os pressupostos estruturantes da capoeira como propícios para uma formação cultural que legitima a cultura dita negra, nos termos de Stuart Hall. Nos acostumamos a menosprezar tudo que seja oriundo da cultura negra. Mas a capoeira, com os seus postulantes pressupostos, nega toda e qualquer manobra que pretenda a subalternização. Na capoeira, apreende-se a cultura dos escravizados do ponto de vista deles, o que inverte a máxima do relato heroico eurocêntrico, em uma palavra, branco. O relato heroico, na capoeira, é contado, cantado e encantado pelos seus agentes com referencialidade em África. Essa inversão de quem relata e de onde se relata, é fundamental, mas imperceptível aos olhos de quem acredita que a escravização foi um engano histórico e por isso pode-se pedir desculpas. A escravização foi uma tragédia que insistem em dirimir seus efeitos (farsa) que se materializam na permanente continuidade das violências. São os vencidos da História que contam a sua história em forma de lamentos, vestimentas, arquitetura, culinárias, engenharias, estratégia de luta, literatura, organização e organicidade dos seus agentes. Em outras palavras, técnicas na apreensão do mundo. São eles e não outros que podem contar a sua História, por meio de histórias ou causos. Só não aprende e apreende o social com a capoeira os que operam por meio de atividades cognitivas eletivas (compreender somente aquilo que se elege como legítimo) e tomam a condição racial como pré-concebida, própria para a discriminação.

Se a formação cultural é a apreensão da cultura de modo subjetivo, como nos ensina Theodor Adorno, é na imersão subjetiva que se pode apreender o mundo da capoeira e dele elaborar o passado a contrapelo. Somente dessa forma se pode imergir a História dos vencidos na emergência dos seus pontos de vista. A capoeira é ancestral e por isso faz justiça aos seus mortos. Quem, em 1890, imaginaria que a capoeira seria praticada em academias da alta burguesia e ensinada nas universidades como disciplina da grade curricular obrigatória e/ou optativa? Nenhuma morte vale a pena, porém os motivos pelos quais morremos glorificam as nossas lutas. Por isso a capoeira é ancestral.

Por fim, “é na percepção da operacionalização da formação cultural dos sujeitos que a cultura tem adquirido sentido e definido a sua alcova” [3] Iê, viva meu deus [4] e assim vamos embora pelo mundo afora, camará!

[1] Ver HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

[2] Mwewa, C. M., Silva, A. S. da, & Rando, J. S. (2022). Notas sobre a configuração do social e a indústria cultural como mediação. Perspectiva40(1), 1–19. https://doi.org/10.5007/2175-795X.2022.e76759

[3] Utilizamos “deus” com letra minúscula para atestar que não existe um único “Deus”, mas sim diversos e diferentes “deuses” que representam cada crença e religiosidade. Agradeço a dica da professora doutora Norma da Silvia Trindade, com quem mantemos interlocuções macumbísticas e capoeirísticas, com afeto.