Ao longo dos anos, diferentes pesquisadoras(es) têm se dedicado a analisar as representações sobre futebolistas mulheres criadas pela revista Placar (Mourão; Morel, 2003; Almeida, 2013; 2016; 2018; Salvini; Marchi Júnior, 2016; Pisani, 2018; Leal; Mesquita, 2021). Retomo uma discussão iniciada em minha tese (Almeida, 2018), em diálogo com Mariane Pisani² (2018). Essa colaboração iniciou em 2017, quando ainda estávamos na difícil fase da escrita de nossas pesquisas e concordávamos que seria importante realizar uma reflexão mais apurada sobre o que representava a dita reportagem de Lemyr.
Em seu texto, Pisani salienta que o futebol brasileiro se constitui por meio de um gênero específico, o masculino. Esse “gênero da bola” (Pisani, 2018) foi construído socialmente no decorrer do século XX. As mulheres permaneceram à margem não somente da prática desse esporte, como também da produção de conteúdos sobre ele. Quando a prática do futebol foi liberada e, mais tarde, regulamentada para mulheres, esse “gênero da bola” já estava legitimado. Nesse contexto, a Placar Magazine já havia solidificado sua posição como a principal publicação esportiva no país, porém com o enfoque quase exclusivo no futebol praticado por homens, considerado símbolo nacional e espaço legitimado a eles. Portanto, ao compartilhar, mesmo que infimamente, esse espaço com mulheres futebolistas, as narrativas aprovadas para compor as páginas da revista acompanhavam a perspectiva adotada pela redação – descrita pelo próprio Juca Kfouri³ (2019), redator-chefe da Placar na época, como de “viés machista e sexista”. Privilegiavam características corporais dentro de padrões de feminilidade vigentes naquele momento. Mariane Pisani ainda afirma que, apesar dos argumentos utilizados nas publicações da Placar sobre futebol feminino
reciclarem os mesmos que justificaram a proibição em 1941, havia certo incentivo à prática desse esporte por mulheres – desde que as adeptas preservassem “os signos supostamente femininos que recaem sobre o corpo delas”, e que tivessem como finalidade “o cultivo de um corpo magro, esbelto e sem excesso de gorduras”, completa. Assim, as reportagens privilegiavam jogadoras brancas, magras, cabelos longos e soltos, maquiadas e em roupas curtas.
Nesse sentido, Pisani (2014) discorre sobre a interseccionalidade entre as categorias sociais de gênero, raça, sexualidade e classe social, que desempenham papéis preponderantes como marcadores de diferenças no âmbito do futebol feminino. A pesquisa realizada pela autora com jogadoras negras provenientes da periferia de São Paulo revela que, embora o futebol seja percebido como um espaço de empoderamento para essas mulheres, elas ainda se encontram submetidas a complexas redes de relações de poder, que, no entanto, atingem em menor escala aquelas que fazem parte de camadas sociais mais elevadas. Pisani fundamenta sua abordagem nos princípios de Avtar Brah (2006), estabelecendo uma conexão entre raça, sexualidade e classe social como fatores interligados e indissociáveis nessa interseção. É a partir dessa interconexão que emergem noções hierárquicas, que tornam as mulheres negras, lésbicas e de periferia mais vulneráveis do que mulheres brancas que compartilham da mesma condição econômica e social. Assim, o marcador classe acaba por se articular a outras vias de diferenciação, tais como o racismo e o heterossexismo (Brah, 2006), exercendo grande influência sob as trajetórias de vida para grupos específicos de mulheres. Sueli Carneiro (2011) e Lélia González (1984), tendo em vista as suas pesquisas realizadas em um Brasil não tão distante temporalmente do representado pela reportagem de 1983, observaram a necessidade epistemológica de compreender a especificidade de mulheres negras diante de dinâmicas de opressão e de hierarquias diferentes das demais mulheres — e que corrobora com o pensamento de bell hooks (2020) sobre as mulheres negras nos Estados Unidos. Contudo, Carneiro analisa que: