(COM)POSSIBILIDADES:OS 50 ANOS DO MAIO DE 68 com-possibilidades_os_50_anos_do_maio_de_68 | Page 47
Kelvin Falcão Klein
as datas, se abriu um rombo no espaço do desespero conjetu-
ral, subiram as imagens do fundo do lago, sem que nada nem
ninguém pudesse evitar as imagens emergiram, e se dobrou e
desdobrou o tempo como um sonho. O ano 68 se transformou
no ano 64 e o ano 60 no ano 56. E também se transformou no
70 e no ano 73 e no ano 75 e 76. Como se tivesse morrido e
contemplasse os anos de uma perspectiva inédita. Quero dizer:
me coloquei a pensar no meu passado como se pensasse no
meu presente e no meu futuro e no meu passado, todo revolto
e sonolento em um único ovo morno, um enorme ovo de não
sei qual pássaro interior abrigado em um ninho de escombros
fumegantes” 19 .
Reconheço nessa exposição de Auxilio o procedimento es-
piralado de Marcel Duchamp, agora com as datas e seus res-
pectivos eventos em movimento, em articulação. O próprio
sobrenome da personagem, Lacouture, tão sugestivo, é incorpo-
rado à espiral e torcido dialeticamente sobre si mesmo – basta
lembrar que Bolaño já havia utilizado o sobrenome Lacouture
na seção “Alguns personagens” do já referido livro A literatura
nazi na América. Uma das entradas dessa seção – que toma a
forma de um dicionário ou inventário – comenta brevemente a
vida de Antonio Lacouture, nascido em Buenos Aires em 1943
e falecido na mesma cidade em 1999 (com o detalhe que o livro
de Bolaño foi publicado em 1996, ou seja, como se o tempo de
sua escritura já desse conta de um tempo vindouro, um tempo
póstumo). Lacouture foi um militar argentino – “ganó la guerra
contra la subversión, perdió la guerra de las Malvinas” –, além
disso foi – “experto en aplicar el ‘submarino’ y la picana eléctrica.
Inventó un juego con ratones. Sus prisioneras temblaban al reco-
nocer su voz. Obtuvo varias medallas” 20 . A lição, evidentemente,
é que todo documento de cultura é também um documento de
barbárie – e Bolaño ratifica a intuição benjaminiana na oscilação
desse significante, Lacouture, “a cultura”.
19 Idem. p. 35.
20 BOLAÑO, Roberto. La literatura nazi en América. Barcelona: Seix Barral, 2005. p. 227.
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