(COM)POSSIBILIDADES:OS 50 ANOS DO MAIO DE 68 com-possibilidades_os_50_anos_do_maio_de_68 | Page 46
Maio de 68 e a literatura
exército e os granadeiros entraram e expulsaram todo mundo.
Coisa mais incrível. Eu estava no banheiro, nas cabines de um
dos andares da Faculdade, o quarto, acho, não tenho certeza.
E estava sentada no vaso, com a saia arremangada, como diz o
poema ou a canção. Graças ao meu inveterado vício de ler no
banheiro, fui a última a perceber que os granadeiros haviam en-
trada, que o exército havia violado a autonomia universitária” 17 .
Quando a “bolha da poesia” se desfaz e Auxilio escuta os
barulhos, ela deduz o que pode estar acontecendo do lado de
fora, abre a porta da cabine e se dirige à janela. Do lado de fora,
vê os furgões do exército e alguns policiais à paisana, infiltra-
dos, jogando alunos e professores no interior dos veículos. Ela
retorna à mesma cabine e senta no mesmo vaso, voltando à
leitura do livro de poemas que leva consigo, deliberada e re-
petitivamente, como um mantra. Eu devia “defender o último
reduto de autonomia da UNAM”, diz ela, “eu, uma pobre poe-
tisa uruguaia”; enquanto esperava, “produziu-se um silêncio
especial, um silêncio que nem os dicionários musicais, nem os
dicionários filosóficos registram, como se o tempo se fraturasse
e corresse em várias direções simultaneamente, um tempo puro,
nem verbal, nem composto de gestos ou ações, e então me vi
e vi o soldado que se olhava no espelho […]. Permanecemos
quietos como estátuas no banheiro feminino do quarto andar
da Faculdade de Filosofia e Letras, e isso foi tudo, depois ouvi
seus passos se afastando, escutei a porta se fechando e minhas
pernas levantadas, decidindo de forma autônoma, voltaram à
antiga posição” 18 .
Enclausurada na cabine do banheiro, a poetisa uruguaia pro-
move uma sorte de fenomenologia da resistência revolucionária,
relatando como experimenta a dilatação do tempo e do espaço,
a variação dos sentimentos e das expectativas e, por fim, como a
leitura particular da poesia se posiciona em contraste à violência
coletiva que se dá do lado de fora. “Logo comecei a pensar em
meu passado como agora penso no meu passado. Logo remontei
17 Idem. p. 28.
18 Idem. p. 33-34.
45