(COM)POSSIBILIDADES:OS 50 ANOS DO MAIO DE 68 com-possibilidades_os_50_anos_do_maio_de_68 | Page 42

Maio de 68 e a literatura pou-se quase tão rapidamente quanto havia surgido, dando ao movimento esse caráter fugidio e sobrevoante que seria utilizado também na descrição da figura de Beckett lendo o jornal. Nessa perspectiva, Duchamp antecipa e cultiva uma série de estratégias fundamentais para o Maio de 68, estratégias que per- manecem em circulação, ao menos na literatura, depois de sua morte e do próprio ano de 1968. No que diz respeito à tendência situacionista de totalização da subjetividade artística, o próprio movimento espontâneo de ocupação do espaço urbano em 68 parece um antídoto eficaz. Faço referência aqui à ocupação grá- fica, semiótica, discursiva que se deu com as várias mensagens nos muros, pois aí se dá a emergência da literatura do maio de 68. São essas inscrições que ao mesmo tempo materializam o Maio de 68 e garantem seu sobrevoo posterior pelo tempo e pelo espaço, inseridas agora em uma espécie de “onda mnêmica” que dissemina ditos, escritos, gestos, ritos ou, para continuar usando os termos de Aby Warburg, “fórmulas de pathos”, cristalizações provisórias de forças amorfas, como são as inscrições 12 . Em 1926, Duchamp e Man Ray, com a ajuda do câmera Marc Allégret, desenvolveram um pequeno filme, o Anémic cinéma, cinema anêmico, uma animação de sete minutos de nove tro- cadilhos em francês, arranjados, letra por letra, numa forma espiralada, sobre discos pretos que foram, em seguida, colados em discos de fonógrafos; os textos iam girando vagarosamente, alternando com tomadas dos Discos com espirais de Duchamp, dez desenhos abstratos que, ao girar, dão a impressão de mo- ver-se para trás e para frente num ritmo erótico 13 . Tenho a im- pressão de que a engenhoca de Duchamp e Man Ray pode servir também para colocar em movimento as inscrições do Maio de 68, muitas delas trocadilhos com ritmo erótico como aqueles encontrados em Anémic cinéma. O movimento espiralado e encantatório do filme de Duchamp, contudo, precisa ser man- 12 GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Com- panhia das Letras, 2014. p. 7-8. 13 TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. Trad. Maria Teresa de Resende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 299. 41