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Maio de 68 e a literatura
importa não é tanto a imediatez do encontro, mas a tensão entre
essa imediatez e essa ideia prévia de que ele seria uma “presença
obscura que sobrevoava a cidade”, algo de intangível e imaterial,
mas não menos reconhecível – um pouco como a carga revo-
lucionária de maio de 68 que se espalha e dissemina pelos anos
posteriores, seja em sua latência ou em seus efeitos residuais.
As memórias de Vila-Matas começam em janeiro de 1974,
quando ele deixa Barcelona para se estabelecer em Paris. No que
diz respeito àquilo que se poderia chamar de carga revolucio-
nária residual de Maio de 68, ele encontra apenas ecos fugidios
e pertencimentos evasivos. Conversando com um francês que
fez parte do evento, este diz ao narrador que passaram poucos
anos, mas que se sente como se fosse uma eternidade. “De tudo
aquilo me ficou somente a lembrança de uma emoção intensa
em um amanhecer no qual pensávamos que o mundo mudaria.
Estávamos nas barricadas e ninguém tinha sono e parecia que
Paris despertava de anos de vida superficial e cretina. Tivemos
um momento de inspiração coletiva, muito emocionante, can-
tamos Jacques Dutronc todos juntos”. E isso foi tudo?, pergun-
ta o narrador. O interlocutor fica calado, pensando, e “nesse
momento”, continua Vila-Matas, entra Roland Barthes no café
Flore, “dando uma rápida olhada na fauna do local” 3 . Aqui se
repete o procedimento usado com Beckett – a presença de algo
obscuro e indefinível é imediatamente corporificada em uma
celebridade cultural, e a reflexão sobre essa imaterialidade de-
saparece tão rápida quanto havia surgido.
A imagem de Beckett lendo o jornal ecoa também em outras
direções, trazendo, contudo, transformações importantes. Não
se trata aqui de uma oração matutina destinada a dar o tom
profundo e harmônico do resto do dia, como no caso de Hegel.
Ou podemos igualmente lembrar a devoção de Kant aos jornais
e revistas e como se articulam diretamente com a emergência
do Iluminismo ou Esclarecimento. Nas palavras de Michel Fou-
cault, na sessão de abertura de seu seminário O governo de si
3 VILA-MATAS, Enrique. París no se acaba nunca. Barcelona: Anagrama, 2007.
p. 90-91. Tradução minha.
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