(COM)POSSIBILIDADES:OS 50 ANOS DO MAIO DE 68 com-possibilidades_os_50_anos_do_maio_de_68 | Page 37

Kelvin Falcão Klein Em seu romance Paris não tem fim, lançado em 2003, o es- critor espanhol Enrique Vila-Matas repassa parte de suas me- mórias como jovem escritor iniciante na Paris da década de 1970. Uma dessas memórias é a observação de Samuel Beckett, o escritor irlandês, sentado em um parque lendo o jornal. “Uma manhã de inverno”, escreve Vila-Matas, “passeava pelo Jardim de Luxemburgo quando em uma alameda secundária divisei um pássaro negro e solitário, quase imóvel, lendo o jornal. Era Samuel Beckett. Vestido de preto rigoroso, da cabeça aos pés, estava em uma cadeira, muito quieto, parecia desesperado, dava medo. E até parecia mentira que fosse ele, que fosse Beckett. Nunca havia imaginado que pudesse encontrá-lo. Sabia que não era um clássico morto, e sim alguém que vivia em Paris, mas sempre o havia imaginado como uma presença obscura que sobrevoava a cidade, nunca como alguém que se pode encontrar lendo desesperado o jornal em um velho parque frio e solitário. Virava as páginas e parecia que todo o parque tremia. Ao chegar à última página, ficou entre absorto e ausente” 1 . Quando comecei a pensar sobre a relação possível entre o Maio de 68 e a literatura, a primeira imagem que me ocorreu foi essa – não tanto Beckett lendo o jornal no parque, mas o narrador de Vila-Matas surpreso diante da visão de Beckett, vestido de preto da cabeça aos pés, lendo o jornal no parque. Eu tinha a intuição, portanto, e como escreve Walter Benjamin sobre os primeiros românticos, buscava fundar “a imediatez do conhecimento sobre a sua natureza intuitiva” 2 . Repassando o romance de Vila-Matas como um todo, nota-se que a apari- ção de Beckett quase ao final das memórias funciona como um resgate de uma série de temas, especialmente o tema da visão “verdadeira” daquilo que se conhece normalmente à distância, como é caso de Beckett e outros escritores celebrados. Mas na visão de Beckett tal como apresentada por Vila-Matas o que 1 2 36 VILA-MATAS, Enrique. París no se acaba nunca. Barcelona: Anagrama, 2007. p. 211. Tradução minha. BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011. p. 32.