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A SOLIDÃO TEM
COR E SEXO
A infância solitária
Há algum tempo, um vídeo em que a youtuber e empresária Ana Paula Xongani relatou a experiência da sua filha, de cinco anos, no parquinho do prédio, levantou o debate
sobre a solidão da menina negra. “A solidão da negra começa na infância”, afirmou Xongani.
Ela relatou que, ao chegar ao playground, as crianças logo se afastaram da sua filha. “É muito triste ver a sua filha sendo rejeitada! Mesmo antes de dizer “Olá!” ela chega perto e todas correm, ela se aproxima, e todas as outras se agrupam, ela chama e ninguém responde. Isolam-a, excluem-a, a machucam”, diz o relato publicado nas redes sociais da youtuber.
Ela ainda complementa dizendo que perguntou à filha se as outras crianças não brincariam com ela. “E ela me respondeu: ‘É sempre assim mãe, mas eu não me importo, gosto de brincar sozinha.’ Será que gosta? Ou aos 4 anos já se protege na solidão?”, questiona Xongani.
A trancista Jhozy Azeredo também relata a solidão vivida na infância. A jovem relata desde a separação, por parte de outras crianças, até o fato de não se reconhecer nos brinquedos e nos personagens comuns às crianças. “Eu não tinha uma boneca negra, por exemplo”, afirma. “sempre tem o preconceito. Muitas meninas se juntavam com os meninos para falar do meu cabelo, ou da minha roupa, porque eu não podia me vestir da mesma forma que elas, porque eu era negra e pobre”, explica ainda, Jhozy.
Segundo ela, entre as brincadeiras que lembra, estavam o costume de formar ‘parzinhos’ entre as crianças, na escola. “Eu era a criança que nunca ninguém dizia que era meu namoradinho”, comenta. “Ou, quando tinha um menino feio, o mais feio da sala, eles diziam que era o meu namoradinho, porque eu também era feia”.
Jhozy relata que essas atitudes refletiram na sua adolescência, quando ela criou uma espécie de barreira de proteção, contra essa solidão vivida na infância. “Eu passei tanto por isso de ‘ninguém quer ser teu namoradinho’ na infância, que eu cresci não querendo namorar. Cresci querendo estudar, querendo ser alguém na vida, para depois ter um namorado. Minha adolescência foi bem tranquila porque eu cresci não querendo me relacionar com nenhum menino”. Ela reconhece essa atitude como uma autoproteção ao racismo sofrido durante o início da vida.
A respeito disso, a youtuber Xongani ainda reflete, com base na vivência da sua filha. "O racismo é aprendido pelas estruturas e reproduzido pelos pequenos de forma assustadora”, analisou. “Ela não entende, mas sente. Não reclama, mas entristece. Meu coração parte!"
Mãe solo e negra
Se a solidão da mulher negra inicia na infância e perpassa os relacionamentos interpessoais, ele também é visível na maternidade. De acordo com o Instituto Búzios, o Brasil é o quarto país do mundo em número de mães solos. “As mulheres negras chefes de famílias com até um salário mínimo de rendimento são mais de 60%, revelando uma escolaridade mais baixa”, indica o estudo.
Quando são analisadas as famílias chefiadas por mulheres que recebem três salários ou mais, a presença das mulheres negras reduz para 29%. Em compensação, no Brasil as condições das mulheres negras contraria a tendência mundial de que elas vivem mais que os homens. Isso porque as negras são as maiores vítimas de feminicídio (61%, de acordo com o Ipea), revelando que, além de enfrentarem a vivência da solidão pela rejeição, são vitimizadas em grande escala pelos relacionamentos familiares e amorosos.
No caso das mães negras, o esforço é duplo: além de lidar com a própria solidão, elas precisam enfrentar a discriminação para com seus filhos. “Ainda a solidão da mulher negra está expressada quando esta tem sua cria expurgada da sociedade, vítima da violência e o Estado sequer escuta sua dor. Esses são apenas poucos olhares sobre a solidão da mulher negra existente, presente e latente em muitas sociedades. Direcionar o tema ao viés afetivo é importante, mas não deve ser um fator limitador. Afinal a solidão faz sangrar de diversas formas”, afirma Sazana Martins.