A Capitolina 9, setembro 2014 | Page 20

Os livros didáticos e as histórias literárias tradicionalmente indicam que o movimento realista teve início em 1857, na França, por ocasião do lançamento de Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880). Esse romance, hoje em dia conhecido como um dos grandes clássicos da literatura ocidental, conta a história de Emma Bovary, uma jovem muito bonita e sonhadora que se desilude com a vida de casada, trai o marido com dois amantes sucessivos, afunda-se em dívidas e termina se suicidando. Resumido de tal forma, o livro parece bastante trivial. De fato, seu enredo não apresenta reviravoltas capazes de suspender a respiração do leitor, tampouco cenas emocionantes que o levam a se debulhar em lágrimas ou disparar em prantos. A protagonista não realiza feitos heroicos, aventura-se pelo mundo ou comete crimes medonhos. Não, nada disso!

Pelo contrário, Madame Bovary mostra o enfado que paira sob as províncias francesas, onde o tempo passa surpreendentemente devagar e nada de novo acontece para salvar sua medíocre população, entregue, por isso mesmo, a fuxicos constantes e à espionagem dos vizinhos. Mostra que a vida nesse local pode causar um tédio absurdo, sobretudo às mulheres da média e da baixa burguesia, que não têm nenhuma tarefa com a qual se ocupar, já que são impedidas de exercer uma profissão fora de casa e deixam as tarefas domésticas a cargo das empregadas. Mostra também que o casamento se torna uma grande decepção para o sexo feminino quando, após a leitura de romances de amor, espera-se por um “imenso país de felicidade e de paixões”, como diz o próprio narrador.

Apesar de ter um enredo bastante simples, a publicação da obra gerou grande polêmica entre os franceses. Em 1857, Flaubert foi processado no Tribunal de Paris por ofensa à moral pública e à moral religiosa. Ernest Pinard, o promotor encarregado do processo, considerava que a leitura do romance poderia incentivar as mulheres casadas a se tornarem adúlteras assim como a protagonista da história, uma vez que Emma, longe de se arrepender de suas faltas, felicitava a si mesma por possuir amantes. Nas palavras do promotor: “Assim pois, desde a primeira falta, desde a primeira queda, ela [Emma] faz a glorificação do adultério, ela canto o cântico do adultério, sua poesia, suas voluptuosidades. Vejam, senhores, o que para mim é bem mais perigoso, bem mais imoral que a própria queda!” (tradução minha).

O leitor que jamais percorreu as páginas de Madame Bovary pode se perguntar: como uma obra com um enredo tão simples pode ter levado a uma disputa judicial? Ou: o que há de surpreendente no romance a ponto de ele ter sido considerado como o marco inaugurador de um novo movimento literário? Na opinião de alguns críticos que se dedicaram à obra (e na minha também), a resposta para essas perguntas está na maneira como a história é construída e não na própria história em si. Explico: os autores contemporâneos a Flaubert costumavam lançar mão de narradores oniscientes e onipresentes, que interferiam frequentemente na narrativa, comentando os acontecimentos relatados, emitindo julgamentos sobre as ações das personagens e dialogando com o leitor a fim de orientar a interpretação.

Vejamos dois trechos extraídos da obra de Balzac: “Voici sur quels faits la veuve Vauqueur appuyait ses calomnies” (“Vejam sobre quais fatos a viúva Vauquer fundamentava suas calúnias”). (Le Père Goriot). “Malheureusement, chez lui, les jouissances de la vanité gênaient l’exercice de l’orgueil, qui certes est le príncipe de beaucoup de grandes choses”. (“Infelizmente, as apreciações da vaidade nele impediam o exercício do orgulho”). (Splendeurs et misères des courtisanes). No primeiro caso, a associação da palavra calúnias à viúva Vauquer serve para qualificá-la de maneira negativa e consequentemente para fazer com que o leitor antipatize com essa personagem. Já no segundo caso, é através do emprego da palavra infelizmente que o narrador revela sua desaprovação quanto à vaidade da personagem Lucien de Rubempré.

O narrador de Madame Bovary se afasta dos modelos de narradores de Balzac e de outros escritores da mesma época por vários motivos. Ele deixa poucas marcas na narrativa, procurando não chamar a atenção do leitor e se camuflar na trama. Utiliza o discurso indireto livre, que ocorre quando os pensamentos das personagens surgem espontaneamente na 1ª. pessoa, misturando-se ao discurso do narrador. Seus conhecimentos são limitados àquilo que sabem as próprias personagens, porque é através dos olhos delas que ele enxerga o mundo. Ele não possui, portanto, o poder da onisciência. Outro aspecto que o diferencia é sua imparcialidade: ele descreve o adultério de Madame Bovary sem condená-la por sua conduta inapropriada, eliminando a carga moralizadora encontrada na obra de outros romancistas do período.

Para não cansar o leitor com uma análise excessivamente longa, cito apenas um exemplo: a célebre cena do fiacre. Emma e um jovem encantador, chamado Leon, percorrem a cidade de Rouen dentro de um fiacre alugado cujas cortinas se encontram totalmente abaixadas. O narrador se abstém de dizer o que se passa no interior da carruagem, preferindo descrever as paisagens percorridas por ela, como os cais, os jardins, as ruas e as pontes da cidade. Embora nada seja dito de forma explícita, o leitor facilmente adivinha que o fiacre serve de refúgio ao casal para uma primeira relação física. Nem mesmo quando Emma desce do carro, o narrador não oferece alguma informação retrospectiva sobre o que passara entre ela e seu amante. Da mesma forma, também não a julga por seu comportamento, ou emite qualquer comentário a respeito de como deveria ou não agir uma mulher casada. Ao contrário dos exemplos acima, extraídos da obra de Balzac, esse narrador se furta da tarefa de guiar o leitor, levando-o a ler nas entrelinhas e a interpretar sozinhos os fatos relatados de maneira sutil. Daí a reclamação do promotor do Tribunal de Paris: o problema para ele, na verdade, não estava no assunto narrado (o adultério de uma mulher), mas no fato de o texto não preconizar para as mulheres a importância da fidelidade conjugal.

O advogado de Flaubert respondeu que o autor havia procurado mostrar os perigos do adultério, oferecendo em Madame Bovary um contra-modelo, ou seja, um exemplo de conduta feminina a não ser seguido. Daí os constantes sofrimentos da protagonista e até mesmo sua morte no final da obra. Nas palavras do advogado: “um livro como esse daqui, tenham certeza, faz mais de uma mulher refletir” (tradução minha). Flaubert escapou do processo e seu livro entrou para o cânone da literatura ocidental, recebeu diversas adaptações cinematográficas, traduções para várias línguas esse tornou presença constante nas prateleiras das livrarias. Ainda hoje, mais de um século e meio após sua publicação na França, continua conquistando os leitores de todo o mundo.

Este mês, por exemplo, ocorreu a estreia de Gemma Bovery, uma comédia romântica inspirada na obra de Flaubert e dirigida por Anne Fontaine – a mesma diretora que fez a biografia de Gabrielle Chanel, Coco avant Chanel. Ano que vem, será lançada uma nova adaptação cinematográfica da história, tendo Mia Wasikowska – a Alice da nova versão de Alice no país das maravilhas, dirigida por Tim Burton – no papel da protagonista. Eu ainda não vi nenhum das duas, mas confesso que acho difícil alguma delas ocupar meu coração depois da versão de 1991, estreada por Isabelle Huppert...

Adultérios, processos e polêmicas: o narrador impessoal de Gustave Flaubert

Ana Laura Donegá