espontaneamente na 1ª. pessoa, misturando-se ao discurso do narrador. Seus conhecimentos são limitados àquilo que sabem as próprias personagens, porque é através dos olhos delas que ele enxerga o mundo. Ele não possui, portanto, o poder da onisciência. Outro aspecto que o diferencia é sua imparcialidade: ele descreve o adultério de Madame Bovary sem condená-la por sua conduta inapropriada, eliminando a carga moralizadora encontrada na obra de outros romancistas do período.
Para não cansar o leitor com uma análise excessivamente longa, cito apenas um exemplo: a célebre cena do fiacre. Emma e um jovem encantador, chamado Leon, percorrem a cidade de Rouen dentro de um fiacre alugado cujas cortinas se encontram totalmente abaixadas. O narrador se abstém de dizer o que se passa no interior da carruagem, preferindo descrever as paisagens percorridas por ela, como os cais, os jardins, as ruas e as pontes da cidade. Embora nada seja dito de forma explícita, o leitor facilmente adivinha que o fiacre serve de refúgio ao casal para uma primeira relação física. Nem mesmo quando Emma desce do carro, o narrador não oferece alguma informação retrospectiva sobre o que passara entre ela e seu amante. Da mesma forma, também não a julga por seu comportamento, ou emite qualquer comentário a respeito de como deveria ou não agir uma mulher casada. Ao contrário dos exemplos acima, extraídos da obra de Balzac, esse narrador se furta da tarefa de guiar o leitor, levando-o a ler nas entrelinhas e a interpretar sozinhos os fatos relatados de maneira sutil. Daí a reclamação do promotor do Tribunal de Paris: o problema para ele, na verdade, não estava no assunto narrado (o adultério de uma mulher), mas no fato de o texto não preconizar para as mulheres a importância da fidelidade conjugal.
O advogado de Flaubert respondeu que o autor havia procurado mostrar os perigos do adultério, oferecendo em Madame Bovary um contra-modelo, ou seja, um exemplo de conduta feminina a não ser seguido. Daí os constantes sofrimentos da protagonista e até mesmo sua morte no final da obra. Nas palavras do advogado: “um livro como esse daqui, tenham certeza, faz mais de uma mulher refletir” (tradução minha). Flaubert escapou do processo e seu livro entrou para o cânone da literatura ocidental, recebeu diversas adaptações cinematográficas, traduções para várias línguas esse tornou presença constante nas prateleiras das livrarias. Ainda hoje, mais de um século e meio após sua publicação na França, continua conquistando os leitores de todo o mundo.
Este mês, por exemplo, ocorreu a estreia de Gemma Bovery, uma comédia romântica inspirada na obra de Flaubert e dirigida por Anne Fontaine – a mesma diretora que fez a biografia de Gabrielle Chanel, Coco avant Chanel. Ano que vem, será lançada uma nova adaptação cinematográfica da história, tendo Mia Wasikowska – a Alice da nova versão de Alice no país das maravilhas, dirigida por Tim Burton – no papel da protagonista. Eu ainda não vi nenhum das duas, mas confesso que acho difícil alguma delas ocupar meu coração depois da versão de 1991, estreada por Isabelle Huppert...
FLAUBERT, Gustave. 'Madame Bovary'. L&PM Pocket. 2013. 1 edição. 387 páginas.