SANTA CECÍLIA
Texto Adriane Lisboa
Foto Felipe Morozini
Se eu fosse cineasta, Santa Cecília seria meu filme.
Documentário, claro. Por si só, ele tem seus personagens, seu roteiro, seus problemas e seus risos. Uma trama tão bem enrolada em seu caos e poesia. Pessoalmente, simboliza minha primeira grande transformação. Há pouco mais de dois anos, aqui vim morar e trabalhar em um projeto, a Pair Store. A poesia rotineira e simples me inspira.
O romance começou quando, anteriormente, trabalhei com Felipe Morozini, por muitos chamado de prefeito de Santa Cecília. Felipe não apenas sonha com a cidade. Sonha também por ela, pelo convívio dos que vivem nela. Por ter estudado arquitetura, foi aqui que meu olhar urbanístico tomou conta e onde minha mente concretizou o estudo: a cidade é feita para pessoas.
Santa Cecília funciona porque é um bairro humilde e democrático. Simples com um quê de comunidade unificadora de gregos e troianos. No caso, os que estão aqui há 50 anos ou mais e os que mudaram ontem. Também o dono da marcenaria iniciada pelo pai, ao lado de uma loja conceitual moderna. Essa mistura funciona, e há respeito. Precisamos uns dos outros e agregamos uns aos outros.
Nem sempre sabemos os nomes de cada um. Muito da conexão gira em torno do encontro rotineiro, do olhar e do sorriso. Um senhor, dono de um restaurante na minha esquina, quando me vê fala "bom dia dona menina". Sempre sorrindo. Pronto. Ali meu dia já ficou mais agradável com a simplicidade de um bem estar trocado na rua. Meu filme começaria assim.
Os personagens? Ah, citaria mais de dez principais. Aqueles com traços tão caricatos e que parecem intrigantes de roteiros nada óbvios: a mulher - sempre séria e elegante - que anda todos os dias com o mesmo colete de alfaiataria preto sobre sua camisa perfeitamente passada, carregando uma bengala e um saco de pão. Talita, dona e chefe de um restaurante cuja especialidade é arroz. Arroz abraço de mãe, sabe? O moço que trabalha na venda da esquina, onde se pode comprar de vassouras a bananas - e mais inúmeras coisas inúteis -, gastando poucos reais. O Jóia, sujeito que de tempos em tempos constrói sua casa na rua e que às vezes até surge com uma televisão velha sem tomada. Toda vez que chego em casa, ele acena. Sinto que cuida da minha entrada no prédio
(onde para entrar, cada um abre com sua chave. Sem dez portas automáticas e seguranças para a cessar a casa. Amém.)
É a recuperação do simples que dá certo. O "simples" que foi deixado para trás por conta de contextos políticos e sociais. Santa Cecília é muita coisa no mesmo lugar: é sentar no banco da calçada e conversar de trabalho, sentir o tempo, ver gente passando, escutar a música que escutam no boteco (que pode não ser a que gostamos, mas que aceitamos porque também aceitam nossas esquisitices). É parar sem celular na mão, passar a mão nos cachorros que passeiam, ver crianças brincando na rua, adolescentes tão diferentes conversando por horas a fio, sentados em cadeiras de plásticos.
É se dar conta de pequena paz no meio do caos urbano, ouvir o barulho da vida acontecendo e sentir-se em casa, mesmo estando na rua. Santa Cecília é.
É também percorrer a Rua Barão de Tatuí e passar pela Pair, pela galeria 55SP, pelo antigo marceneiro, pelo estúdio dos irmãos Campana, por uma banca que faz shows para a rua no seu pequeno teto. É cruzar por botecos, pelo Studio Bergamin, pela costureira, pela loja de construção.
É ter uma mistura de ares, de serviços, de arte. É entender que a mistura é necessária e agregadora. É entender que são outros tempos mas que o simples dá certo, e que retroceder ao espírito comunitário é, na verdade, evoluir coletivamente. É tomar ciência de que a cidade é nossa. É surpreender com o simples. Trocar, agregar, se sentir acolhido. Santa Cecília é.
Cada bairro tem sua história, seu roteiro. Mas é aqui que meu coração fica.