Saci Pererê - 100 anos do Inquérito 2018 | Page 9

Andriolli Costa e os 90 anos do inquérito ?

Artigo

Arte : J . Wasth Rodrigues

Andriolli Costa e os 90 anos do inquérito ?

A primeira vez que ouvi falar no trabalho de Carlos Carvalho Cavalheiro foi em 2007 . Eu havia acabado de iniciar minha pesquisa sobre cultura popular , com foco no Sítio do Picapau Amarelo quando descobri que alguém tentara refazer o histórico Inquérito sobre o Saci , de Monteiro Lobato para celebrar os 90 anos da pesquisa . Hoje , no centenário do Inquérito , pudemos finalmente conversar . “ Eu já escrevi certa vez que o mundo é redondo para que os homens não se escondam nos cantos ”, brinca ele .
O Inquérito de Carlos nunca foi oficialmente encerrado . Aberto em 2006 para as celebrações do ano seguinte , continuou recebendo colaborações em fluxo contínuo até agora . Em uma década foram cerca de 40 depoimentos , entre textos , artigos , ilustrações , poesias e letras de música . Tal qual o trabalho lobatiano . O plano era transformar tudo em livro para aproveitar a data , algo que acabou não acontecendo .
Ocorre que hoje o número é respeitável , mas a resposta foi demorada . A divulgação foi uma dificuldade : feita basicamente por e-mail , sem a ajuda da grande mídia – como em 1917 , ou das redes sociais como foi possível agora . “ Se houvesse mais adesão na época , quem sabe tivéssemos estímulo para fazer o livro ”, lamenta Carlos . Até 2012 ele ainda enviava e-mails pedindo histórias , mas os compromissos profissionais e o próprio nascimento do filho fizeram a coleta ficar de lado .
Ainda há planos de utilizar o material , no entanto , que conta com riquíssimos depoimentos . Tanto que Carlos tem dificuldade para selecionar os favoritos . Textos dos gabaritados Luis Galdino e Olívio Jekupé estão na lista , é claro , mas há aqueles que foram grande surpresa . “ Um saciólogo escreveu um estudo filogenético sobre a predominância dos sacis de perna esquerda sobre os de perna direita ”, diverte-se .
Uma das críticas feitas ao trabalho de Lobato é a predominância de relatos da elite . Afinal , quem responde ao chamamento do autor são homens letrados , assinantes do Estado de S . Paulo . Em verdade , o recorte tecnológico é uma deficiência que também temos hoje . Afinal , nem todos possuem acesso ou disposição para traduzir um causo da oralidade para o texto escrito , e enviar o resultado para outrem – seja por correio físico ou eletrônico .
“ Infelizmente qualquer pesquisa sempre será uma interpretação acadêmica sobre uma narrativa popular . É uma contingência do formato , que não tira sua validade ”, reflete Carlos . “ É sempre uma parcela da população que se expressa ”.
Carlos , que é historiador , com formação em pedagogia e teologia , explica que a linguagem simbólica do mito toca os seres humanos de maneiras que o indivíduo não consegue explicar pela razão . “ Até porque o mito não se entende pela racionalidade ”. Foi essa potência que sempre o tocou e encantou , e Carlos faz questão de transmitir o encantamento adiante .
“ Certa vez recebi uma garrafa que supostamente continha um saci . Levei para a escola onde dou aula em Sorocaba , deixei na coordenação e avisei do conteúdo ”, relembra ele . “ A coordenadora debochou , chacoalhou a garrafa e disse que dentro não havia nada . Pois não deu muito tempo e a umidade da garrafa começou a evaporar . Ela foi correndo me entregar a garrafa por que tinha visto um saci lá dentro ”. O perneta apareceu por que foi desafiado , conclui .
Aproveito a formação em Teologia de Carlos para questionar sobre a relação entre saci e religiosidade . Afinal , para muitos ele é o próprio demônio , ou ainda um diabinho que escapou do inferno enquanto o diabo fazia um forró . Ao mesmo tempo , em Serra Negra , a igreja de São Benedito traz sacis com asas de anjo em seus murais , junto aos demais santos católicos .
“ As bases que fundaram nossa cultura sempre foram baseadas em muito sincretismo e muito preconceito ”, reflete . “ Tudo que é desconhecido tentamos interpretar conforme nossa cultura . Assim os católicos vão entender o saci como demônio , pela própria relação dele com as religiões de matriz africana que foram demonizadas ”.
Isso vale também para diferentes sistemas de crença . “ Aqueles que acreditam em alienígenas vão entender aparições do saci como contatos extraterrestres , como faz Antônio Faleiros . Quem pratica o espiritismo vai ver o saci como um espírito zombeteiro . Roselis Von Saff , da Ordem do Graal na Terra via ele como ser da natureza , aparentado dos gnomos e duendes ”.
Espírito , demônio , força da natureza . O que é o perneta , afinal ? A melhor resposta até agora é que o saci apenas é , e isso é o bastante .