Revista Traços Revista Traços | Page 15

"Há tempo, muito tempo que eu

estou longe de casa", ele canta, e na voz dele a canção do Belchior ó como se a arte imitasse a vida. Ou será a vida imitando a canção do Belchior? O certo é que Davi Silva dos Santos está há tempo, muito tempo longe de casa.

A casa, na verdade, é mais ou menos perto, fica na Expansão do Setor O, Ceilândia, a menos de 40 quilómetros de distância da Torre de TV onde dorme todas as noites ao relento — mas Davi está há 28 anos longe de lá.

Era menino quando foi para as rua pela primeira vez, nem sabe direito por quê. Talvez porque a casa fosse pequena demais para a família grande demais. Talvez porque com tantos filhos (nove ao todo) o pai e a mãe não tivessem tempo de cuidar das dores de cada um. Talvez porque naquela época o salário mínimo fosse tão mínimo que seu Dejacy e dona Maria do Amparo não davam conta de alimentar tantas bocas, e por isso o feijão-com-arroz de cada dia um dia era só feijão, no outro só arroz. Ou talvez porque o destino do menino Davi fosse mesmo a rua.

TETO DE ESTRELAS

Aos 7 anos de idade, Davi vigiava

carro. Aos 36, segue vigiando carro.Mas se engana quem pensa que ele ficou todo este tempo parado no mesmo lugar. Não. Nesse meio tempo Davi aprendeu a cantar e tocar violão.

Aprendeu a sonhar antes de dormir, deitado na grama que sua todas as noites. Davi an estrelas,

mas sonha com outro teto que lido seja o céu.

Sonha também em gravar CD, e cantarr para uma plateia que nem precisa ser tão grande

para uma plateia que nem precisa ser

tão grande, pode ser só usei punhado

de gente praça qualquer, mas

gente com ouvidos e coração bem

abertos para as canções gospel de

esperança que compõe em meio à

desesperança das ruas. Para isso

precisa de um violão e de uma boa

caixa de som, e Davi não tem nem uma

coisa nem outra. Violão até já teve,

ganhou de presente, mas perdeu: é

difícil ter coisas quando não se tem

um teto e quatro paredes para

guardá-las.

pode ser só usei punhado de gente praça qualquer, mas gente com ouvidos e coração bem abertos para as canções gospel de esperança que compõe em meio à desesperança das ruas. Para isso precisa de um violão e de uma boa caixa de som, e Davi não tem nem uma coisa nem outra. Violão até já teve, ganhou de presente, mas perdeu: é difícil ter coisas quando não se tem um teto e quatro paredes para guardá-las.

DAVI NO LABIRINTO

Se naquele tempo o destino do

menino Davi talvez fosse mesmo a rua, o certo é que hoje não é mais, há muito deixou de ser.

O UNIVERSO EM EQUILÍBRIO

Davi não sabe quando exatamente a música entrou em sua vida. "Eu acho que ela sempre esteve, ela me preenchia inteiro, como se eu fosse um balão, como se eu precisasse de uma agulha que furasse a minha pele e liberasse essa música toda de dentro de mim".Numa das curtas temporadas em que deixou as ruas e voltou para casa, aprendeu na igreja a cantar e a tocar violão. Mais tarde, descobriu Belchior, Zé Ramalho, Raul Seixos, Bob Dylan... E hoje não consegue viver sem música.

Com a música, enfrentou a tristeza e a discriminação, venceu a invisibilidade reservada a quem vive em situação de rua, porque de tanto ouvi-lo as .Com a música, ele acalmou os espíritos mais violentos das ruas. Acalmou, sobretudo, a sii mesmo. Por isso, não se cansa de inventar declarações de amor: "A música é tudo, é o compasso do universo" "Quando eu toco, o meu corpo se equilibra, tudo entra na órbita certa" ."A música é o veículo: ela leva e traz os passageiros, que são os nossos sentimentos."

ÀS VEZES NO SILÊNCIO DA NOITE

Davi voltou a estudar. Hoje cursa a quinta série na Escola dos Meninos e Meninas do Parque, para pessoas em, para pessoas em situação de rua. Ganhou de presente do Centro Espírita Irmão Áureo a bolsa de estudos para a escola de música Escala, em Águas Claras. Melhorou o canto, aprimorou o dedilhado. Quer seguir em frente, tirar carteira de músico profissional, ensinar violão às crianças pobres, para que elas tenham futuro, e para que o futuro delas não demore tanto a chegar, como o dele demora.,Davi não perde a esperança e segue traduzindo em música o duro aprendizado das ruas:

nem o dele demora.

Ainda que tudo demore

tanto, Davi não perde a

esperança. Ele espera:

"todo rio corre pra mar; o

rio da minha vida vai chegar

lá". Enquanto dura a

travessia, vai traduzindo em música

o duro aprendizado das ruas:

"QUANDO TOCO, O MEU CORPO SE EQUILIBRA ,TUDO ENTRA NA ÓRBITA CERTA."

menino Davi talvez fosse mesmo a rua, o certo é que hoje não é mais, há muito deixou de ser. Mas então assim não sendo, por que Davi não volta para casa, que continua existindo no mesmo beco sem saída, na mesma.Expansão do Setor O?

Porque com o tempo a família cresceu e a casa continuou do mesmo tamanho. Davi, que antes já não cabia, agora cabe menos ainda.

Mas ele não culpa a familia, com quem até hoje mantém contato.Culpa antes de tudo a si mesmo, por não resistir ao chamado da rua,por tão cedo

se apaixonar pela liberdade ilusória da rua, por aos seus dez

anos de idade e ter sido mais fraco que o álcool e a cocaína. Davi perdeu-se no labirinto das ruas de onde até hoje luta para sair, seguindo um invisível novelo de lã feito de voz e violão