CONJUNTURA POLÍTICA
“POLITICAL GAMEFICATION”
POR ANTONIO LAVAREDA
No Brasil e em boa parte do mun-
do ocidental, a política está em
ebulição. As instituições da de-
mocracia liberal parecem prestes
a serem dissolvidas como na frase
de Marx e Engels que Marshall
Berman (1982) tomou para título
do seu livro mais famoso: “Tudo
que é sólido desmancha no ar”. O
regime cuja arquitetura foi iniciada
no século 18 e teve sua engenharia
consolidada no século 20, ameaça
não resistir ao século 21, marcado
pela globalização, vertiginosidade
da informação nas redes sociais e
expansão acelerada e tentacular da
inteligência artificial.
O ritmo do processo de deliberação
dos poderes Legislativo e Judiciário
é percebido como insuportavel-
mente lento. E como tal eivado de
suspeição aos olhos do cidadão
conectado que, consciente ou in-
conscientemente, exige das agên-
cias oficiais a mesma interatividade
acompanhada da brevidade reso-
lutiva que as empresas do mercado
lhe asseguram.
Nesse contexto, a primeira vítima
é o conceito de livre representa-
ção dos legisladores, sintetizado
no célebre discurso de Burke aos
eleitores de Bristol: “Vocês esco-
lhem de fato um membro; mas
quando acabam de fazê-lo ele não
é mais um membro de Bristol e
sim um membro do Parlamento”
(Burke:1790).
As redes, ao contrário, impõem o
mandato imperativo. A representa-
ção é vista quase como deformação,
praticamente como em Rousseau
(1762) enaltecendo Roma e Espar-
ta. Aos congressistas sendo facul-
tado obedecê-las ou sucumbir à
guilhotina eleitoral.
A segunda é a redução do grau de
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Revista SESVESP
por sua velocidade, contrastada à
lentidão paquidérmica identificada
nas outras esferas.
Uma terceira vítima poderá vir a
ser a própria ideia geral de demo-
cracia, ferida de morte por algorit-
mos de Big Data. A tecnologia em
disjuntiva com a liberdade (Foer:
2017) abrindo espaço para a Inte-
ligência Artificial criar uma Dita-
dura Digital (Harari: 2018). Porém,
se assistimos a sinais claros dos
processos aludidos, sabemos que as
opções políticas para ganharem es-
cala sempre precisaram ocupar pre-
liberdade das altas cortes do Judici- viamente um espaço relevante nos
ário. No passado é verdade que elas corações e mentes. Afinal, Hitler
ganhou eleições antes de liquidá-
já eram submetidas à influência da
opinião pública. Mas o papel dessa -las (Levitsky & Ziblatt: 2018). Até
mesmo os golpes demandam apoio
última era o de uma fragrância
social. Será que nessa dimensão o
mais ou menos forte que impreg-
nava sentenças definidas sobretudo futuro da política democrática está
comprometido de antemão?
pela interpretação das leis. Agora,
Um levantamento em 38 países
os tribunais e seus membros são
submetidos a paixões excitadas on- trouxe uma nota tranquilizadora.
Mostrou um amplo suporte global
line que frequentemente extrapo-
para a “democracia representativa”,
lam para o mundo off-line, expon-
apontada por 78% como uma boa
do os juízes a incessantes tensões e
forma de governança. Com ela veio
constrangimentos.
a constatação de que coerentemen-
A fragilização desses dois poderes
te 73% rejeitaram “governos milita-
abre espaço para a hipertrofia do
res” e 71% disseram não a “líderes
Executivo, dessa forma presa fácil
fortes”, ou seja, ditadores.
dos populismos. Que tendem a
Mas a pesquisa também trouxe
estabelecer uma relação dialogal
preocupação e ansiedade. O sinal
direta com o cibercidadão. Ora
de alerta se acendeu quando foram
promovem disputas diversionistas
inconsequentes porém de boa octa- apresentadas as opções “governo de
nagem emocional, numa espécie de especialistas” e “democracia direta”.
“polítical gamefication” que ajuda a A primeira dividiu as opiniões com
esvaziar polêmicas substantivas; ora 49% de adesão, enquanto a segunda
obteve nada menos que dois terços,
são capazes, por não terem barrei-
impressionantes 66% de aprovação.
ras deliberativas, de dar respostas
Ao que parece o que Bobbio (1979)
rápidas a um grande número de
chamou de “fetiche” da esquerda
pequenas questões. Ambos ex-
volta nesse século com força redo-
pedientes tornam o César desses
brada e transversal, uma utopia que
tempos socialmente encantador
passa a galvanizar