Cara, você não vê televisão?!” Quando me lançou a pergunta, agitando os braços e elevando consideravelmente a voz, Neimar Medeiros Matos parecia irritado – ou, na melhor das hipóteses, sem paciência para conversar. Logo, porém, demonstrou o contrário. “Ver, você certamente vê. Mas prefere canal pago, né? Só pobre acompanha a tevê aberta”, sentenciou, agora de um jeito francamente amistoso, ainda que à beira do grito. Expressar-se em alto volume – percebi depois – é corriqueiro para quem, como Matos, vive sob o viaduto Engenheiro Noronha, também conhecido por viaduto Laranjeiras, o mesmo nome do bairro onde se localiza, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O barulho ininterrupto do trânsito exige que se tempere a fala cotidiana com uns rugidos de trovão. Não à toa, naquela tarde abafada de novembro, diversas vezes suspeitei que meu interlocutor se aborrecia ou me confrontava. Bobagem. O carioca um tanto calvo, de cavanhaque embranquecido, camiseta regata, bermuda e chinelo de borracha queria apenas se fazer escutar; se fazer ouvir.
Perto do viaduto, um grafite extenso e de gosto duvidoso exibia as feições da cantora Cássia Eller. “Ela morou nas redondezas. Bem aqui perto. É uma homenagem pra lá de bonita”, explicou Matos, enquanto caminhava até um amontoado de lixo. “Está bem ali, a nossa última tevê”, apontou, resignado. “A infeliz quebrou faz poucos dias. Tivemos que jogar fora.” Numa calçada, entre restos de comida, garrafas vazias de cerveja, sacos plásticos amarrotados e copinhos de refrigerante, jazia um aparelho paleozoico de 14 polegadas. “Televisão de tubo, acredita? Uma Toshiba… Nem sei se a marca ainda existe.”, ele comenta.
Catador de material reciclável, Matos nasceu na Penha, Zona Norte do Rio. Habitou quartos, barracos, casebres e quitinetes em inúmeros pontos da cidade e da Baixada Fluminense antes de se mudar para Laranjeiras, há uma década. Desde então, define-se como sem-teto. “O termo correto é esse: sem-teto. Morador de rua, não. Quem mora na rua, o carro atropela. Eu vivo em cima da calçada.”
Hoje, divide o relento com cinco pessoas – quatro homens e uma mulher, a maioria catadores. Os seis dormem próximos uns dos outros e, curiosamente, mantêm o hábito de ver televisão. “Assim que me instalei no bairro, descolei um aparelho e trouxe para baixo do viaduto”, relembrou Matos. Valendo-se de uma gambiarra, puxou a energia que alimenta os postes da região e ligou a tevê. “Entendo um pouco de eletricidade.” A partir daí, nunca deixou de ser um telespectador a céu aberto. “Já passaram quarenta ou cinquenta televisões por aqui. Umas pifaram. Outras, os funcionários da prefeitura levaram. Não me pergunte a razão… Pura maldade! Por acaso, a tevê da gente atrapalha alguém? Não, né”
Ele e os companheiros garimpam os aparelhos nos lixos dos arredores ou com a vizinhança. “Fulano compra uma televisão nova e me avisa: ‘Neimar, aparece lá em casa para buscar o trambolho.’ O trambolho é a tevê antiga que, até ontem, o bonitão usava sem reclamar.”
O catador de 55 anos se considera querido em Laranjeiras. “Todo mundo me valoriza, graças a Deus. Só uns enjoadinhos teimam em implicar. Me confundem com mendigo. Errado! Sou um trabalhador. Não peço esmola nem desperdiço o dia tomando cachaça. Já cheirei muita cocaína, admito. E, quando cheirava, bebia o que pintasse. Mas me livrei desse inferno. Agora só restou o vício em cigarro, uma desgraça difícil de largar.”
Mal soube que a combalida Toshiba quebrara, um morador do bairro ofertou outra televisão à turma do viaduto. “Uma belezinha de 29 polegadas”, contou Matos. O aparelho é analógico, mas o sinal de tevê no Rio se tornou exclusivamente digital em 22 de novembro – processo que se repete pelo Brasil afora. Devido à mudança, os donos de televisões old school necessitam adquirir um kit conversor se desejarem sintonizar as emissoras abertas. Eis o problema de Matos. Ele conseguiu uma substituta para a Toshiba e, no entanto, não dispunha do equipamento que poderia transformá-la em digital.
Lojas na internet comercializam o kit conversor por preços entre 70 e 160 reais. Acontece que os beneficiários de programas sociais do governo federal têm o direito de recebê-lo gratuitamente. Daí a surpresa do catador quando nós tratamos do assunto: “Cara, você não vê televisão?!” Eu desconhecia a possibilidade de se obter o kit sem pagar nada, embora os canais abertos martelassem a informação dia e noite.
Como os telespectadores do viaduto não usufruem de nenhum incentivo governamental, restava-lhes comprar a traquitana. “Sei de uns camaradas que ganham o Bolsa Família e pegaram o kit de graça”, disse Matos. “Talvez um deles tope vender o troço baratinho.”
Enquanto o catador fazia planos, me ocorreu que seria praticamente impossível ouvir o áudio da tevê em meio à zoeira do trânsito. “Tremendo engano, meu amigo! Escuto tudo. Basta ficar bem de frente para o aparelho que o som vem na minha direção. Se ficar de lado, não adianta.”
Há uma década, o carioca Neimar Medeiros Matos mora embaixo do viaduto Laranjeiras, onde costuma ver televisão. “Luciano Hulk para Presidência da República? Só pode ser piada!”
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