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LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018
olvidar-se da ruína da mulher que um dia fora e vislumbrar uma guerreira a
desbravar caminho.
A cabeça do inspetor emergiu, precipitadamente, da porta do automóvel
adquirido há poucos meses, e, sem uma palavra, uniram as mãos sobre o
caminho enlameado. Vacilaram quando se aproximaram da campa de Catarina.
Sentaram-se, em silêncio, e Masil pigarreou antes de começar a ler o conto
preferido da filha dos dois inspetores: Era uma vez…
Quando terminou de ler a história a Catarina, anoitecera e as estrelas
pontilhavam o céu noturno de luzes dispersas. Arrefecera.
João conduziu Masil para o apartamento secreto que partilhavam no Bairro
Alto e observou-a a mudar de roupa e a esbater a maquilhagem. Ele também se
transfigurara sob o olhar atento da Má da Silva, especialista em detetar a mínima
dissonância. Afinal, havia uma missão a cumprir.
Transfiguraram-se em animadores culturais voluntários de uma organização
sem fins lucrativos. Sob esse disfarce, foram até a Serafina e bateram às portas
das casas onde havia crianças com fome e frio, muitas delas molestadas. Sempre
que podia, Masil narrava a história preferida da filha aos meninos e às meninas
reféns daquele bairro sem sonhos. João entregava brinquedos e alimentos aos
avós (decerto os pais e mães andavam no tráfico ou no consumo, e esses atos
não respeitam dias festivos).
Contar uma história era a única forma de honrar o natal das crianças que
viviam uma realidade sem direito a infância. Na condição de inspetores, haviam
congeminado este modo de manter a vigilância no bairro que seria sujeito a uma
nova rusga no final de janeiro.
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