LiteraLivre n º 9 – Maio / Jun de 2018
recordava-se dos caminhos percorridos ao longo da pele de Maria e o desejo transparecia na forma como se dirigia à colega.
- João, estou na Baixa. Podemos encontrar-nos à porta da Brasileira? – De súbito, um menino com seis ou sete anos empurrou as pernas de Masil para se esquivar a um outro menino num jogo da apanhada; o telemóvel resvalou-lhe das mãos para o chão, e a bateria caiu para dentro de uma poça de água funda. Maria Silva respirou fundo várias vezes, recolheu a bateria ensopada, aceitou a desculpa atabalhoada apresentada pela mãe de ambos os meninos e entrou, mais uma vez, na loja onde os livros a convidavam a uma estadia mais longa do que a programada.
Sem telefone móvel, tinha uma desculpa perfeita para se demorar. Folheou revistas literárias e revisitou narrativas policiais que a encantavam pela ingenuidade, mas também pela precisão do raciocínio dedutivo utilizado. Por fim, foi à procura da obra cujo conteúdo era dotado de tanto significado para si.
Embora não fosse um campeão de vendas, o livro contava com várias reedições, talvez devido à beleza despojada da história e à poesia contida em cada uma das palavras que a compunham. Susteve a respiração enquanto pedia ao funcionário que embrulhasse a edição do ano corrente; quase não conseguia tolerar a imagem da capa. Por vezes, interrogava-se se esta rotina se constituiria como uma forma de tortura própria, mas a terapeuta afiançara-lhe que era um ritual normal nesta fase- e bastante bonito, por sinal.
Antes que pudesse encaminhar-se para a Brasileira, João irrompera pela loja adentro de um modo intempestivo, como sempre. Dirigira-se a ela, relanceara o saco com o embrulho que transportava na mão, abraçara-a e, em menos de um minuto, levara-a para um café discreto perto do S. Carlos e encomendara um chocolate branco para ambos beberem. Ela notara que o inspetor Correia desligara o telemóvel, deixando Sílvia e os miúdos esquecidos na casa confortável e acolhedora na qual a esposa aguardaria pelo regresso dele.
João desembrulhara o conto( o dístico impresso no saco admoestava os compradores de livros, leitores ou não: ofereça um livro), olhara para a face de Masil e chorara, procurando ocultar as lágrimas com recurso a um lenço de pano que lhe sobejava por ser varão de família de nobre e antiga linhagem.
Maria explicara-lhe o plano a concretizar nesse fim de tarde. Encaminharamse, de mútuo acordo, para o cemitério da Ajuda, cada um no seu carro. Afinal, era importante evitar o falatório e sempre haveria colegas de Masil ou amigas de Sílvia a cirandar por ali, sobretudo num dia de festa.
Maria chegara primeiro. Maquilhara-se rapidamente, abusando do corretor de olheiras. Esperava não ficar com a pele acinzentada sob a luz desigual da tarde de dezembro. O recipiente da máscara de pestanas dizia: Fique mais perto. Queria sentir-se bonita para a visita que se avizinhava. João Correia deveria
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