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LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018
quentes de suas mães queridas. Não foram poucas as vezes que levei mães e
bebês para fazerem a travessia: isso acontece com muito mais frequência do que
eu gostaria de imaginar, mas é assunto pra outra hora.
Quero contar duas histórias hoje, e a primeira se passa na cama de um asilo. Foi
um dos resgates mais traumáticos que eu já fiz. Seu nome: Horácio, órfão de
filhos. Havia três meses que ele est ava ali, e há pelo menos dois sequer recebia
visitas. Recusou-se a comer depois de um tempo, e os cuidadores não
perceberam que ele só fingia engolir os remédios. Sofreu muito nos últimos dias,
mas creio que essa dor física não se compara à de ser abandonado por aqueles
por quem ele teria dado a própria vida, aqueles de quem ele tanto cuidara,
muitos anos antes. Encontrei-o de pé, ao lado da cama onde agora reuniam-se
seus quatro filhos, duas noras, um genro e meia dúzia de netos. Estavam lá por
eles mesmos, se me permitem opinar, só pra cumprir o protocolo. Ele sorriu
quando me viu, reconheceu-me como a um velho e saudoso amigo. Deu-me um
abraço, lembrança que vai me marcar pro resto da minha existência, pois eu era
o único que estava ali por causa dele. Quando chegamos à ponte, ele se
despediu. Observei ele atravessar, imaginando o que deve haver do lado de lá.
A segunda é, se eu puder assim colocar, ainda mais traumática. Flor estava
escorada na parede do banheiro, bem debaixo do chuveiro, ainda ligado. Na mão
direita uma navalha, o sangue escorrendo do pulso esquerdo. Suas roupas
manchadas com o líquido, vermelho e quente, que respingava pra todos os lados
nos ladrilhos coloridos. Cheguei um pouco antes dela... você sabe. Tinha só
quinze anos, e tremia muito quando me viu. Tentei ser o mais discreto possível,
ajudei-a a levantar, e seguimos nosso caminho. Falamos pouco, e não perguntei
o porquê. Mas ela me disse: cansada de viver em um corpo que não era o dela,
ela deixou o mundo que não é o nosso. Flor não era seu nome, e eu nunca soube
qual era.
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