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LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018
sabe? Naquele momento que a palavra ia sair e a gente se esquece, é porque elas
estão caçoando de nós, geralmente se escondem na ponta da língua, dando risada
dos nossos lapsos. Explicou certa vez para outro interno que o olhava apavorado.
Susto mesmo, a moça levou quando se deparou com ele deitado na grama,
em posição fetal e com a respiração ritmada. Presenciou o velho ter contrações no
corpo e espasmos no rosto, até exibir um riso choroso, típicos dos recém-nascidos.
Estava com uma habilidade fora do comum para alguém da sua idade, pegava os
próprios pés e levá-los em direção a boca, parecia estar se divertindo e terminou
num sono profundo.
- Mas seu João, o que foi aquilo?
- Uma terapia que aprendi na década de 1980, quando passei uns meses em
Nova York. Consiste em voltar para o útero e renascer, às vezes é importante
reviver este momento, para nos darmos conta do milagre que é a existência
humana. Aquela foi a minha fase mais esotérica, até jogar tarot eu sabia... Foi
importante, me curou de muita coisa que não deixava a vida fluir.
Às vezes o velho se senta na varanda e passa horas assim, olhando o vazio
com o vai e vem da cadeira de balanço, é nestes momentos que dá vazão para a
tristeza. Logo se vê com a família, naquele cruzeiro que fizera pelo litoral brasileiro.
Foi uma das viagens mais feliz de sua vida e uma das poucas que conseguiu fazer
com sua família, inclusive os seus pais, que estavam pela primeira vez em um
navio. João passou boa parte daquela semana fingindo ser Pedro Álvares Cabral
para distrair o filho que enjoava e que não aproveitou aquele presente. Até que
veio uma onda gigante com o barulho ensurdecedor de carros batendo.
A enfermeira já sabe que teve pesadelo com a morte do filho, ao ver o velho
acordar chorando.
- Cheguei neste portão sozinho, carregando tudo que restou da minha vida
dentro de uma maleta, conta ainda entre lágrimas. Me dá um comprimido para
dormir um sono sem sonhos? Não quero mais sonhar, não aguento mais essa vida,
essa realidade. Eu quero dormir! Eu quero dormir! Pede desesperado.
Ela o leva para o quarto. Não diga isso, o senhor teve e ainda tem uma vida
tão boa, sempre foi tão fantasioso, fez a diferença na vida de tantas pessoas que
leram seus livros. Não deve ser fácil inventar...
O velho a encara sério, quase bravo, e diz:
- Eu nunca inventei nada, tudo já existia dentro de mim.
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