Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre 9ª edição | Page 46

LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018 Baú de histórias Renata Machado São Leopoldo/RS A enfermeira recolhe o livro do velho que está dormindo. Reconhece que é um exemplar da biblioteca e coloca na maleta em cima do criado-mudo, ao lado da cama. Sempre aberta, deixando a mostra os cartões-postais, um binóculo, um jogo de tarot e um porta retrato com ele ainda jovem. Na imagem, o homem tem um sorriso quase infantil e o cabelo comprido com cachos até o meio das costas, está escrevendo alguma coisa. É o registro da sessão de autógrafos do seu primeiro livro. O velho é escritor e parece que dos bons, tanto que tem obras dele na biblioteca. Foi um homem bonito, deve ter tido uma vida muito interessante. O velho sente um toque suave sobre as suas mãos. De repente escuta o barulho do derbak vindo da sala ao lado. Luísa deve estar ensaiando, dum dum tak, dum tak. Como gosta de vê-la dançar, nos palcos e nos ensaios, mas principalmente de improviso, sem respeitar ritmos e notas, só o desejo do corpo de quem está prestes a se entregar à paixão. E quantas vezes isso aconteceu e se sentiu como se estivesse num sonho. Ela gosta do velho e não esconde sua afeição, ele parece com o seu pai, mas mais inteligente. Seu pai também é cheio de histórias e muito imaginativo, mas nunca conseguiu desenvolver isso. Lembra no primeiro dia de trabalho, o encontrou em cima de uma árvore, fazendo folhas de jornal de binóculo e gritando terra à vista. Logo avisaram que o melhor é não dar corda, ele entra e sai do devaneio sozinho. Há quem pense que deveria estar em um hospício e não num asilo, coi sa que ela não concorda. Apesar de sozinho, o velho parece feliz e satisfeito com a sua vida, apresenta aquele ar de quem se reconhece responsável e não como vítima. Já perdeu a conta de quantas vezes presenciou cenas bizarras protagonizadas pelo velho. Como as passadas largas, quase maiores que as pernas parar fugir das supostas bombas, agindo como se o pátio fosse um campo minado. Lembranças de guerra são sempre muito fortes e acompanham quem esteve em uma para o resto da vida. Tanto que ele afirma que o problema no joelho esquerdo foi por causa de uma mina que o atingiu de raspão na Guerra do Vietnã, quando trabalhava como repórter para a extinta revista Focus, nos anos 1960. Ou quando diminui o passo e bate palmas no ar, como se tentasse pegar algum inseto. - Estou brincando de pega-pega com a minha inspiração, as palavras andam por aí dando sopa, só precisamos caçá-las no momento certo, se demoramos muito para fazer a captura elas fogem e perdem o sentido. Mas agora, quando dá branco, 41