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LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018
Líquidos de mau cheiro passavam por baixo do muro, invadindo o ambiente
circundante, como um câncer atacando a vida da cidade. Nas caves das casas
circundantes, corriam fluidos cheirosos e corrosivos.
Agora a fábrica é uma ruína de arqueologia industrial, abandonada. Para uma
geração inteira de jovens, os tempos dourados de sua existência não são nem
um lembrete. Um projeto de demolição integral está pendente, para construir um
novo bairro residencial. A muralha continua sendo a fronteira entre a vida
cotidiana e a irrealidade, entre a cidade e o pesadelo que é a "negação" mesma
da cidade. Atrás daquela muralha, após o fechamento da fábrica, o pior pesadelo
da cidade de hoje apareceu: um campo precário de nômades deserdados. A
exclusão tomou o lugar da prisão, a pobreza absoluta dos novos clandestinos tem
substituído o trabalho assalariado. Um quilômetro de fronteira, como uma
membrana osmótica, separou nos últimos anos a vida urbana e o quarto mundo
dos excluídos. Uma barreira impermeável e opaca para os milhares de motoristas
que todos os dias seguiam pela avenida. Talvez em alguns anos, por trás desse
muro, haverá prédios e shopping centres, então a barreira acabará por ser
afastada. Um bairro inteiro, que hoje vive dividido em dois, como assediado, vai
respirar um suspiro de alívio. Os marginais serão transferidos para algum outro
"buraco negro" no território extra-urbano. A fronteira da humanidade vai mudar,
alguns quilômetros apenas para além.
No outro extremo da cidade, uma comunidade de intocáveis colonizou um
ilhote quase inalcançável ao longo do rio, acessado por um caminho estreito que
se aproxima de um pequeno cemitério da periferia e passa na escarpa sob a
ponte da rodovia. Você pode caminhar apenas a pé ou de bicicleta até alcançar
um fluxo de água, atravessado por uma pontinha. É como uma viagem de
iniciante que faz você ir à descoberta de um mundo secreto.
Além da ponte, quando o rio não está cheio, um pequeno grupo de pessoas
vive como no início do mundo, entre florestas, água e mosquitos, em uma antiga
casa abandonada. Não é a ilha de Avalon, se parece mais aos leprosários dos
tempos remotos.
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