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LiteraLivre nº 6 – novembro de 2017
brincadeiras de menino antigo, que hoje nem sequer conhecemos.
Só então me dei conta de que não o conheci o suficiente, que nunca pude
entrar na intimidade desse menino que teria me ensinado coisas
surpreendentes, talvez até essa liberdade que perdemos, a cada dia, soterrada
nos formalismos da vida.
Comecei a ter saudade desse tempo que não vivi, do tempo de meu pai. Era
certamente um tempo diferente, sem prédios, sem carros, sem a extrema
violência atual. Imaginava um menino de calças curtas – como no retrato da
sala, envelhecido, já quase descorado –, fabricando pandorgas, mergulhando
nos rios, rodando pião, indo à escola de pés descalços, com seus cadernos,
penais, livros de tabuada, talvez um estilingue no bolso. Essa infância
longínqua que não adivinhamos nos velhos.
Imagino um jovem magro e ágil, atleta do velho Luzeiro, com calção e
camiseta sem manga. Um moçoilo de bigodinho aparado, todo frajola, nos
bailes do Clube Estrela do Mar, rodopiando valsas e polcas; parado na porta de
confeitarias enquanto passam na rua, em bandos, as moças de vestido
comprido, bocas pintadas em coração e chapéus de todos os tipos. Tempo de
serestas, de filmes mudos nos cinemas, de regatas na baía. E me veio um
pensamento tolo: será que houve outras mulheres, outros amores, antes de
minha mãe? Será que o velho tinha sido fiel no casamento?
O sentimento (ou a vergonha) de desconhecer meu pai, agora que jaz deitado
no caixão escuro, ínfimo, encolhido como um legume murcho, me dói mais do
que sua morte. Nunca nos sentamos numa mesa, numa praça, num bar, a fim
de nos conhecer mais a fundo. Sabia de sua presença, seus gestos, sua voz
calma e pausada, mas a morte havia levado seu passado indecifrável. Eu o
amara de um modo frágil, acanhado, sem abraços e carinhos, talvez por uma
frieza ancestral, originária de nossas raízes germânicas.
Levantei do banco, entrei em casa; numa cadeira nos fundos da sala uma
vizinha cabeceava de sono, outras duas conversavam baixinho. Peguei um
caderno de capa dura, uma caneta e voltei ao banco. A luz do poste se
irradiava tétrica, tristonha, nas pedras do calçamento.
Empalmei a caneta e iniciei, numa das folhas, com letra tremida: Pai, te
escrevo...
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