LiteraLivre n º 6 – novembro de 2017
golpe sem apelar para a bebida. Quando exagerava no copo tornava-se inconveniente. Era padrinho da Helô, minha irmã, e já foi beliscando a bochecha de meu sobrinho menor. O garoto se assustou. Com tudo em ordem, esperamos a chegada do pessoal para a vigília. Papai era muito conhecido na cidade. Havia sido atleta e presidente do Sport Club Luzeiro, o time mais antigo do lugar. Tinha se aposentado como funcionário da prefeitura, onde lidava com os diversos tipos de público. Sua fina educação – a voz cordial – e seu modo compreensivo de atendimento tinham lhe carreado grande admiração, principalmente dos mais pobres. Às nove horas da noite, algumas beatas, amigas da mamãe, se reuniram de mãos dadas em torno do caixão e fizeram uma oração, acompanhada por todos. A sala estava repleta de pessoas; encostados à parede, no lado de fora, dois ex-colegas de serviço do velho fumavam em silêncio. Curiosos paravam em frente da casa e espiavam pela janela. Um velhinho atravessou a porta e veio perguntar: é o Seu Epaminondas da prefeitura? Que Deus o tenha. Será que o pai estava vendo de algum lugar a homenagem que prestavam ao seu corpo nesse limiar entre a presença ainda acesa e o eterno desconhecido? Ou sua vida havia estancado ali mesmo naquele corpo magro e branco? Ali pelas onze da noite permaneciam apenas umas seis pessoas. Minha mãe e a mana tinham ido dormir. Tio Juvêncio havia encontrado na cozinha uma garrafa de cachaça com butiá e, de bicada em bicada, já andava de olhinho fechado, os gestos lentos. A viúva Vicentina, nossa vizinha, narrava com feição compungida a morte e os sofrimentos do marido, coitado, que Deus havia levado cedo. Me postei ao lado do caixão e fiquei observando, como se fosse pela primeira vez, as pintas arroxeadas que lhe cobriam as mãos, o nariz alto e largo que se destacava entre pétalas de flores, as manchas na testa, os cabelos ralos. De madrugada, me sentei num banco na pracinha em frente à casa. Me sentia sem jeito diante da morte de meu pai, não sabia onde colocar minha dor. Na última hora, no último adeus, acho que não ia saber nem onde colocar as mãos. Era a primeira vez que enfrentava tão de perto morte na família. Sua morte me trouxe estranhos pensamentos: o que sabia de sua vida, de sua infância, de sua mocidade? Quais seus sonhos, seus desejos escondidos por trás da postura comedida? Via-o, neste instante, sair da foto antiga da sala, ainda menino, e imaginei sua infância indomável, a preparar pescarias e caçadas, ou mesmo outras
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