LiteraLivre Edição Especial nº 03 - 2019
médica. Poderia ter dito isso a ela. Mas não disse. Talvez por orgulho, talvez por
culpa. E ela nunca aventou tal possibilidade. Talvez por respeito, talvez por amor.
Para ele, a vida era um querer sem freios. Eram metas, metas e metas.
Alcançada a primeira, nem a degustava e já era sugado pela engrenagem da
próxima, da próxima e da próxima. A vida era uma moenga de momentos, de
sonhos. Para Leninha, não. Passava, plena, pelos minutos, pelas horas, pelos
dias, pela vida. Talvez o constante brilho do olhar e a perene ternura do seu trato
tenham norteado e protegido a caminhada confiante de Nestor. Para ele, isso era
absoluta convicção. Pena nunca ter dito a ela.
Há um ressoar de passos no corredor. Deve ser a enfermeira. Cerra os
olhos. A voz suave, sussurrada, avisa que vai substituir o soro e ministrar um
medicamento. O líquido queima e dá a sensação que vai rasgando a veia quando
injetado na canícula. Certamente deve ser sonífero. Ou analgésico. Interessante
que, hoje, as feridas das costas não latejam. O colchão d’água está mais
suportável, refrescante.
A enfermeira sai e Nestor reabre os olhos. Ainda bem que Leninha não
acordou. Continua ressonando, mansamente. Sempre foi assim, sono profundo,
restaurador. Talvez seja pela ausência de remorsos.
De volta à penumbra, os pensamentos voam para as palavras irreverentes
da mãe, lá atrás. Ela dizia que todo moribundo, antes de morrer, apresentava
uma melhora assustadora. Mas que isso não a enganava. Sabia que a morte era
matreira e que só queria abocanhar a vítima com mais vigor. Nestor sente
vontade de rir, de gargalhar… A alma gargalha.
Leninha acorda. Busca, com os pés, os chinelos no chão. Aproxima-se da
cama. Agora ele a vê. Está colocada bem de frente, na mesma direção dos olhos
dele. Bonita. Mesmo com os cabelos grisalhos totalmente desgrenhados, continua
formosa. Serena. Mas os olhos embaciaram. Olha fixamente no rosto do amado,
bem de perto. É possível sentir o respirar pelas narinas. Tão perto, tão longe...
Nestor sente a carícia das mãos que passam pelos cabelos, pela testa, pelo
rosto... Leninha fala com os olhos, abraça com o cuidado. E ele se abandona no
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