Revista LiteraLivre 7ª edição | Page 89

LiteraLivre n º 7 – janeiro de 2018
Carlos Almeida Viseu- Portugal

No Fundo do Poço

Os gritos da sirene preenchendo a extensão da longa e estreita rua assemelhavam-se aos uivos do vento em digressão cortando as esquinas das tardes de inverno. O carro gigantesco dos bombeiros aproximava-se do fundo da rua onde se acotovelavam algumas criaturas atropelando vocabulário ensurdecedor, gesticulando sobre as sombras já caídas das árvores e das fachadas rústicas. Um rapazito sobressaltado acorreu em passo acelerado à chegada dos bombeiros. O rapazito tinha uma história para contar. O rapazito era senhor de um gatinho ainda bebé, bichano encontrado ali mesmo no final da longa rua, animal assustado e esfomeado, logo arrancado da rua e apresentado à família com a fama de andarilho. Não descansava o petiz enquanto não chegava da escola, as mãos e as brincadeiras enredando o gatito em longas investidas desde os cantos da sala até aos ângulos do quintal. Uma única e frondosa cerejeira refrescava o espaço do quintal aberto à inclemência do sol de tardes escaldantes. O gatito depressa descobriu todos os recantos e labirintos da moradia, em poucas semanas conquistando peso e os corações da família. O quintal ao final da tarde tornavase um espaço apetitoso, a copa da árvore frutífera logo descoberta e tornada floresta gigantesca para as aventuras do bichano irreverente. Não descansava o bichano na ânsia e deslumbre em conquistar os espaços abertos e fechados, as alturas e os esconderijos, arriscando ficar prisioneiro em algum buraco ou tubo mais apertado, dando-se a cheirar com estranho empenho todas e quaisquer substâncias ou objetos espalhados pelo condomínio. Não descansava ele nem o rapazito atarefado e ansioso nas correrias ao encontro dos disparates e fugas precipitadas do gatito, a algazarra de um transformada no divertimento do outro. Até que naquele dia a tragédia se instalara: o diabo do bichano descobrira um antiquado e mal protegido e profundo poço seco e por ele perdera – se de amores, o corpito apertado lançado adentro do poço quiçá atrás de algum bichito dos matos até se estatelar bem no fundo de uns dez metros de escuridão, o corpito assustado miando em gritos à espera de um gesto salvador. O petiz mirava em lágrimas a enorme viatura dos bombeiros, o petiz mirava de rosto em lágrimas os rostos comprometidos de todos os bombeiros equipados descendo da enorme viatura, o petiz gesticulava em lágrimas ao longo de horas de pânico apontando para a entrada do poço de onde ainda se escutavam quase
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