LiteraLivre nº 7 – janeiro de 2018
depois alegando esquecimento, diz ela que eu que preciso de remédios para
memória.
Me lembro de um dia de chuva, quase ninguém passava e quando
passavam era correndo ensopados, mas é única, vestia uma capa de chuva,
daquelas amarelas, em cima de um vestido vermelho. O que em outros ficaria
disforme, nela era como uma capa de puro ouro cobrindo da chuva uma chama
viva de fogo. A calma em seu olhar, o andar determinado e sem perder o sorriso
e a felicidade no rosto.
Dia mais frio e cinzento que aquela aconteceu uns meses depois. Veio
seguindo pela rua não uma ou outra pessoa, não só Dona Clarice, mas sim um
cortejo funerário. Vi de longe as pessoas da cidade de preto chegando,
caminhando de rosto abaixado, tristes, chorosos. Carregando além de toda dor
um caixão com Dona Clarice bela até sobre o véu do paraíso. Morrera, disseram
eles ainda costurando, de uma hora para outra, sem nem saber o que aconteceu,
sem sentir dor. Sai da janela, desci de casa e me juntei a minha procissão,
seguindo pela última vez a minha santa.
Desde então deixei minha janela, quase não vejo outras pessoas, além das
da casa. Comecei um novo passatempo, ando pintando no antigo ateliê do meu
pai, como ele fazia. Todas as pessoas que conheci continuam aqui comigo, gosto
de pintá-las como me lembro delas passando. Dizem que Dona Clarice morreu,
dizem que meu pai morreu, vão dizer que tantos outros que passaram em minha
janela morreram ou vão morrer. Mas como podem eles estarem mortos se
continuam aqui comigo, quando fecho os olhos, quando retomam vida na tinta,
nos quadros.
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