LiteraLivre n º 7 – janeiro de 2018
Marcella Pires Goiânia / GO
Paralisia
Quando a atmosfera fez-se sufocante, fugi por uma porta secreta e mergulhei ao fundo de um quarto oculto do meu eu. Um fundo escuro e inebriante, onde vozes ecoam estridentes por todos os cantos. Nesse continente perdido, mundo de silogismos sem inferência, encontrei fantasmas de todas as cores, meus companheiros carrascos, escondidos em meio à penumbra do cômodo cinzento. Suas vozes roucas, seus corpos disformes e seus passos arrastados despertavam, em alerta, meus sentidos e instintos. No auge de seu ódio, sufocavam-me com suas mãos compridas, tomando de volta meu fôlego ao cingir-me em abraços grosseiros. Mas era de suas vozes macilentas que ouvia boa noite. Com cantigas de ninar, faziam-me sonhar, enchiam minhas terras de novas histórias, sobre novos heróis dourados de mundos longuínquos do outro globo. Fizeram dessas planícies um campo fértil, de onde a loucura emana em abundância e inunda o solo na forma de regatos de prata. Quis conhecê-los de perto, levar meus olhos ao fundo dos seus. Depois de anos de convivência, ousei desobedecer suas regras. Ao virem novamente até a ponta da minha cama, com seus corpos cinéreos exalando mau agouro, e pondo-se mais uma vez a me observar-- vidrados, fixos-- enquanto meu corpo dormia, quebrei o feitiço da paralisia e flutuei ao seu encontro, atravessando lentamente a atmosfera pesada do quarto. Aproximei meu rosto aos seus e olhei no fundo daqueles olhos em espiral. Minhas narinas resfolegavam ar morno nos rostos surpresos, constrangidos por ter sua charada desvendada: suas faces eram a minha própria. O mapa do meu rosto minuciosamente delineado em cada um. Minha mente entrou em turbilhão, e a confusão consumiu-me por completo, enquanto faíscas de múltiplos matizes queimavam, inaudíveis, ao nosso redor. Uma luz dourada então iluminou meus pensamentos, e o sentido fez-se entendido: vivo sozinho em mim mesmo. Éramos todos um só, e a pluralidade seria inconcebível, porque estrangeiros quaisquer não chegam ao continente dos sonhos alheios. Minhas projeções desfizeram-se então em espuma e vapor, subindo pelos ares e desaparecendo logo em seguida, sem previsão de retorno. Abandonaram-me em um quarto vazio. https:// atabularosa. wordpress. com
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