Revista LiteraLivre 3ª edição | Page 116

LiteraLivre nº 3 logo notou como os sapatos daquele homem estavam sujos. Os sapatos podem demonstrar a personalidade de uma pessoa, ou, na pior das hipóteses, o quão alguém é organizado, higiênico e vaidoso. Aqueles sapatos, em especial, estavam maltratados por demais. Logo desvencilhou seu olhar dos seus pés e cumprimentou-o educadamente, fitando-o nos olhos e convidando-o a se sentar. - Muito bom dia, meu senhor! - Pois este será mesmo um grande dia! Respondeu quase irônico, se é que irônico não foi, pairando à implicância, e, sem que precisasse perguntar-se mais nada, o homem dos sapatos sujos dispôs-se a contar breve e euforicamente os últimos dias que vivenciou. Contou que trabalhava apenas algumas horas por dia, mal-assinando alguns papéis mal-lidos e mal-escritos em muitas das vezes, despachando ordens, sentado em sua cadeira importada e mergulhado no conforto dum aparelho que condicionava o ar – de modo que enquanto cá fora ventava, dentro de sua saleta se acalorava e vice- versa - e, sem que precisasse perguntar, de novo, o homem que trabalhava pouco exclamou contente que conseguira seu posto após a indicação de um parente influente. - Ora, que felizardo és! Pasmou-se diante de seu cliente, pasmado. Mas, eis que quando começou a contar sobre todas as suas regalias e todo o conforto da sua casa, sem que fizesse o mínimo esforço, foi informado que o serviço terminara. Retirando algumas notas do bolso, pagou-lhe com sobras às quais chamou de esmolas – e com os sapatos agora limpos e brilhantes seguiu seu rumo afora, desligou o alarme do carro e queimou seus pneus no asfalto já aquecido do trânsito intenso. Enquanto seu mais novo cliente partia, sentindo-se estranho guardou as notas recebidas no bolso. Pegou sua caixa de engraxate, aprumou os cabelos no vidro duma vitrine qualquer e seguiu a passos lentos de volta também para a sua casa. Os corredores pelos quais caminhava e todos o cumprimentavam eram as ruas, e a sua empresa não possuía sede determinada – podia ser aqui, acolá, quando e onde o chamasse, pois seu serviço era bem feito. Dia e tarde, às vezes à noite, andava pelos cantos e becos limpando os sapatos de alguém – mas os seus estavam sempre limpos... E andou e pensou e trabalhou tanto àquele dia, que quando deu por si já escurecia. Retornou ao seu lar, trocou de roupa e guardou seu terno engomado, lavou o rosto e pensativo foi dormir. Mas, do outro lado da 110