LiteraLivre nº 3
logo notou como os sapatos daquele homem estavam sujos. Os sapatos
podem demonstrar a personalidade de uma pessoa, ou, na pior das
hipóteses, o quão alguém é organizado, higiênico e vaidoso. Aqueles
sapatos, em especial, estavam maltratados por demais. Logo
desvencilhou seu olhar dos seus pés e cumprimentou-o educadamente,
fitando-o nos olhos e convidando-o a se sentar.
- Muito bom dia, meu senhor!
- Pois este será mesmo um grande dia!
Respondeu quase irônico, se é que irônico não foi, pairando à
implicância, e, sem que precisasse perguntar-se mais nada, o homem
dos sapatos sujos dispôs-se a contar breve e euforicamente os últimos
dias que vivenciou. Contou que trabalhava apenas algumas horas por
dia, mal-assinando alguns papéis mal-lidos e mal-escritos em muitas
das vezes, despachando ordens, sentado em sua cadeira importada e
mergulhado no conforto dum aparelho que condicionava o ar – de modo
que enquanto cá fora ventava, dentro de sua saleta se acalorava e vice-
versa - e, sem que precisasse perguntar, de novo, o homem que
trabalhava pouco exclamou contente que conseguira seu posto após a
indicação de um parente influente.
- Ora, que felizardo és!
Pasmou-se diante de seu cliente, pasmado. Mas, eis que quando
começou a contar sobre todas as suas regalias e todo o conforto da sua
casa, sem que fizesse o mínimo esforço, foi informado que o serviço
terminara. Retirando algumas notas do bolso, pagou-lhe com sobras às
quais chamou de esmolas – e com os sapatos agora limpos e brilhantes
seguiu seu rumo afora, desligou o alarme do carro e queimou seus
pneus no asfalto já aquecido do trânsito intenso.
Enquanto seu mais novo cliente partia, sentindo-se estranho guardou as
notas recebidas no bolso. Pegou sua caixa de engraxate, aprumou os
cabelos no vidro duma vitrine qualquer e seguiu a passos lentos de volta
também para a sua casa. Os corredores pelos quais caminhava e todos o
cumprimentavam eram as ruas, e a sua empresa não possuía sede
determinada – podia ser aqui, acolá, quando e onde o chamasse, pois
seu serviço era bem feito. Dia e tarde, às vezes à noite, andava pelos
cantos e becos limpando os sapatos de alguém – mas os seus estavam
sempre limpos...
E andou e pensou e trabalhou tanto àquele dia, que quando deu por si já
escurecia. Retornou ao seu lar, trocou de roupa e guardou seu terno
engomado, lavou o rosto e pensativo foi dormir. Mas, do outro lado da
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