LiteraLivre nº 2
velhice. O peso da idade já estava lhe atingindo. Talvez não devesse
passar tanto tempo se olhando. Quando não se olha muito no espelho, é
possível criar uma imagem de quem achamos que somos, e não
precisamos ser quem a realidade nos mostra. Talvez fosse exatamente
por isso que tinha seu segredo tão bem guardado.
Um barulho lá de fora chamou sua atenção, e quase que por um
segundo, achou que a imagem do espelho continuara olhando-o, mesmo
quando virou a cabeça. Saiu apressado do banheirinho, com o coração
palpitando. “Chegou, finalmente chegou”, dizia de si para si. Assinou
correndo o documento e mal olhou para a cara da moça que realizava a
entrega. Como se fosse um dia de natal e ainda uma criança, pegou uma
faca e rasgou a fita adesiva que selava a caixa ao meio. Procurou pela
embalagem que dizia “Doce de Ovos”. O esmalte reluzia um amarelo
gema bem forte. Ficou uns dois minutos olhando para a beleza daquela
cor. Enfiou o frasco no bolso, caminhou para os interruptores, apagou a
luz, pegou um frasco de tamanho médio na prateleira, suas chaves e
começou a fechar a drogaria.
Verificou duas vezes se havia trancado a porta e começou a andar
rapidamente para sua casa. Apertava o frasco no bolso como se fosse
um pomo de ouro prestes a fugir. Refez mentalmente seus planos:
tomaria um banho de banheira, com direito a velas e sais aromáticos.
Abriria uma garrafa do vinho, que comprara na promoção, colocaria seu
álbum preferido para tocar na vitrola e começaria sua noite.
Morava na casa antiga de seus pais, desde que a mãe, já viúva,
abandonou também o planeta Terra. Era desses casarões antigos com
direito a porão, banheira de louça, cristaleiras antigas e tudo o mais. O
piso range a cada pisada, mas não trocaria seu lar por nenhum outro
lugar no mundo. Até porque ficava a somente dois quarteirões da
farmácia e poder morar a cinco minutos do trabalho é um grande luxo
hoje em dia.
Chegou em casa meio sem querer chegar. Quando se planeja algo
por muito tempo não se tem mais certeza de querer fazer tudo aquilo,
pois depois de feito, não teria mais pelo que esperar e cairia naquela
rotina monótona e sem cores do dia a dia. Hesitou alguns segundos com
a chave na fechadura, mas por fim lembrou-se de seu esmalte novo e
abriu a porta rapidamente.
Foi fazendo cada etapa de seu plano calmamente, prestando atenção
em cada detalhe e apreciando aquele momento tão esperado. Afinal, não
era todos os dias que podia se ter uma noite como essas. Ligou as
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