Revista LiteraLivre 19ª edição | Page 74

LiteraLivre Vl. 4 - nº 19 – Jan./Fev. de 2020 Fernando Antônio Fonseca Belo Horizonte/MG Cão Falante A casa estava abandonada há muito tempo. Os transeuntes nem se davam conta de que ela existia, e passavam pela rua sem sequer notá-la. Seu último morador havia falecido, e parece que não deixou herdeiros. Assim, ela se tornou abrigo de excluídos e de amantes sem escrúpulos, embora se localizasse em uma região nobre da cidade, bastante valorizada. Era uma edificação antiga de traços coloniais, semi-destruida, e era alvo de construtoras que cogitavam erguer no local um prédio de apartamentos. Porém, havia outro projeto que pretendia construir no local uma praça comunitária, dotada de equipamentos para ginástica e jardins floridos, com o aval da prefeitura. Mas o que dificultava a concretização de uma das duas opções era localizar os parentes distantes do ex-proprietário, para alavancar as negociações e concretizar o projeto vencedor. Assim, foi rastreada a parentela do antigo morador, e descobriu-se, após uma investigação, que ele deixou um testamento no qual destinava todos seus bens para um cachorro pastor-alemão, de nome “Arquimedes”, que fora seu cão- guia nos últimos anos de sua solitária vida, pois sua visão havia se deteriorada com o glaucoma. O cão, por sua vez, ainda vivia, e habitava as ruínas da casa, fazendo companhia aos seus moradores ilegais, que o alimentavam com sobras de comida e por ele tinham apreço. Sabendo disso, as autoridades judiciárias pretendiam alienar o imóvel e destinar toda a renda obtida na construção e manutenção de um canil que abrigasse os cães-de-rua da região e adjacências, além de construir no canil uma moradia especial para “Arquimedes”. E assim ficou decidido. Porém, ao se dirigirem à casa para resgatar o animal, descobriram que ele não era um cão normal: era um cão falante, que havia aprendido a falar com seu [71]