Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 36

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 Aparecida Gianello dos Santos Martinópolis/SP Meu nome é Arquimedes Fazia anos que eu frequentava aquele lugar, mas nunca antes havíamos tido um contato tão íntimo quanto ao da última visita. Logo que cheguei fui direto ao pátio. Era lá que ele gostava de passar as horas mormacentas do dia. Absorto, sequer notava o próprio tempo passando. Era quase fim de inverno, as folhas faltavam em quase todas as árvores e o sol incidia radicalmente em seu rosto sulcado pelas rugas. Por vezes parecia até se inteirar à paisagem opaca daqueles dias. Deleitava-se com a presença dos pássaros, especialmente os canoros. Além da paixão pelos amigos emplumados, cultivava ainda uma calma imutável a qual se percebia facilmente em seu gestos desapressados de ser. Chamavam-no, ali, seu Duda. Bem apessoado, de fala compassada e de um cavalheirismo notável, ele se destacava entre os habitadores do velho abrigo. Era conhecido ainda por contar estórias, embora nada soubesse de si mesmo. Quem sabe não tivesse uma boa razão que o animasse às lembranças... Eu, que sempre procurei ficar mais retirada, nesse dia tive a denodada ideia de penetrá-lo. Meu mais audacioso plano era nada mais nada menos que invadir seu mundo, romper com seus esquecimentos feito criança malina. Para meu espanto, assentiu. Veio de encontro, desconstruindo-me por completo. Parecia esperar por aquele momento, o que eu não esperava. Uma sensação de embaraço e êxtase foi me tomando à medida que fomos nos beirando. Seus olhos, de um azul profundo a doer os meus, focaram-me tão ternos. Como queria desvendá-los! Compreender seus mistérios, penetrar seus anseios, alcançar quimeras, reminiscências... Será que havia ainda em sua mente algum lugar cujo tempo não bagunçara? Minhas mãos suavam, meu coração dilatava palpitante atingindo a altura da garganta. Definitivamente, seu Duda exercia sobre mim uma força descomunal. [33]