Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 29

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 Arquitetei um plano sórdido. Apanhei a sua taça de vinho que por hábito todas as noites, na fantasia da minha mente, ele tomava, e coloquei nela forte dose de um remédio que havia roubado há dias na bandeja da enfermeira da noite. Fui silenciosa e despejei todo o produto no tinto que estava na mesinha em frente a lareira. Ele veio de jaleco branco, passos pesados, gravata desapertada. Sentou-se na cadeira de balanço e sorveu o vinho vagarosamente. Caiu em sono letal. Traiçoeira, fui até o seu bolso e retirei um cartão. Nele estava escrito: Alzheimer!!! Suspirei realizada. Finalmente havia me livrado do mal que me destruiu... Esse era o nome do “estranho invasor”!!! Aquele a quem entreguei os meus últimos anos. Na demência degenerativa desliguei-me de tudo, perdi minha identidade, minhas referências, meus amigos, meus filhos e nem pude contar histórias para os meus netos. O tal desconhecido que me dominou e que me levou por inteiro a um mundo perdido na escuridão. Nada se pode comparar à perda da memória, à perda da nossa identidade pessoal, O Alzheimer lambeu todas as minhas impressões digitais. Fiquei nua, indefesa, sozinha num mundo particular, só meu e dele. Destruí-lo representava a minha própria destruição, éramos indivisíveis. Não me importava sol nem chuva, dia ou noite nos altos e baixos do descontrole total das minhas emoções. Eu estava perdida no mundo obscuro das sombras, um mundo solitário de onde nunca mais pude voltar. [26]