Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 149

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 Maria Carolina Fernandes Oliveira Belo Horizonte/MG Teto e pingado Aqueles lábios continham o inferno inteiro. Vermelhos como Marte, todas as noites, muito bem pintados. Os trejeitos ousados acompanhavam a boca, que trabalhavam duro na belo-horizontina Guaicurus. Usava infinitas pulseiras de strass barato nos antebraços, e, por isso, seu aceno era todo brilho. Vinham até ela em tom de curiosidade, de júbilo ou de necessidade de externar um desejo de autoridade reprimido. Fosse o que fosse, suas colegas diziam que era sua gargalhada fácil, emoldurada pelos lábios grossos, que sempre lhe dava o sim dos indecisos. Resplandecia. Teria nos gestos a plenitude de um pintor mediúnico, se não por um único detalhe. Como a viam não era quem ela era. Uma personagem em trajes de máscara. A peruca era frouxa e deixava desprotegida a alma. Por detrás dos longos cílios e das cores ululantes carimbadas nas pálpebras, as lágrimas contidas. A visão embaçada pela indiferença. E o aceno de mil pulseiras, uma camuflagem para esconder as marcas deixadas pelas bitucas que eles apagavam em seu corpo. Eles, contudo, não conheciam seus olhos, não notavam que o brilho das pupilas há muito se perdera, e não saberiam dizer quais as nuances pigmentavam sua íris. Os tecidos eram curtos demais para cobrir seu corpo, e era esse o pedaço dela que lhes era familiar. Não seu rosto. Não seu beijo. Não seu nome. Mas seu sexo. O sexo que lhe fora tomado à força na primeira, na segunda e na vigésima vez, mas não nas próximas vezes, pois decidiu buscar sustento naquilo que seu padrasto lhe obrigava em segredo desde os oito, num colchão velho no barraco em que moravam, enquanto ela olhava para o teto e chorava, e chorava, até que um dia as lágrimas não vieram mais. Nas conversas rápidas entre um cliente e outro, ou nas conversas de padaria quando vez ou outra se dava ao luxo de um desjejum de pingado e pão na [146]