Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 13

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 diferença é que agora não tinha mais poças de sangue pelo caminho. Outro diagnóstico. Pneumonia. Quadro grave. Momento desalentador. A equipe do hospital São Jorge foi enfática ao dizer que Naná teria poucos dias de vida. Hoje penso que ela teve menos tempo de vida do que de morte. Seu único traço vital era um pequeno movimento. O restante do corpo estava imerso na obscuridade. Minha mãe chegava ao fim. Comemoramos seu último aniversário dentro daquele quarto da Unidade de Terapia Intensiva. Ainda levei as letras desenhadas na cartolina, vesti suas roupas, troquei as fraudas. Seu último pedido foi para percorrer as ruas da Vila dos Jangadeiros, onde tinha vivido durante a fase de meninice. Os médicos não autorizaram, mas ainda consegui mostrá-la um depoimento de cada amigo da infância, bem como imagens das casas, do comércio e das ruas daquele vilarejo. Quando reparei, uma lágrima escorria, embrenhando-se pelo pescoço, deixando sal pelo seu rosto. Um depoimento a fez piscar o olho em demasia. Era o testemunho de seu Altamir, comerciante notável da comunidade, que recordou os tempos de colégio, período das primeiras paixões e descobertas juvenis. Depois de alguns dias, mamãe piscou o olho cinco vezes. Era o código para eu passar as letras. Insistiu em agradecer minha dedicação. Dessa vez, lágrimas invadiram minha face. Tudo que consegui pronunciar foram as mesmas palavras que um dia verbalizei. "Tenha calma Naná, tudo vai terminar bem". Sentia, naquele momento, que ela estava partindo. O corpo exigia libertação da prisão carnal. Quanto tempo sentindo as entranhas da escuridão, suplicando por liberdade, esperando abolir aquele peso. As correntes de seu próprio corpo romperam-se. O olho direito piscou pela última vez. As letras da cartolina já não serviam mais. [10]