LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
Amélia Luz
Pirapetinga/MG
Viagem
Se das sombras pudesse lembrar diria que quando comecei essa longa
viagem estava com meia idade, cansada, sem grandes perspectivas para a vida.
Viúva, filhos criados, vida vazia. Morava no vigésimo andar de um edifício numa
rua sombria, sem árvores, sem canto dos pássaros e quase sem sol. Estava meio
perdida num mar de solidão e silêncio. Era uma grande rotina, levantar, tomar
café, ler o jornal assistir à TV, ler mais um pouco, cozinhar sem vontade, comer
sem vontade, chegar à única janela dos fundos e visualizar o casario de uma
favela distante. Além dos meus filhos que raramente me visitavam era somente o
carteiro. E a fisioterapeuta que vinha semanalmente revitalizar-me a
musculatura.
Foi nesse quadro estranho que comecei um relacionamento. No princípio
achei coisa comum, estresse após tantos anos de trabalho como arrimo de
família. Comecei a tomar umas mágicas pílulas cor-de-rosa que me relaxavam e
me faziam esquecer aquele invasor que cada vez mais tomava conta de mim.
Antes eram encontros passageiros depois tudo foi ficando mais sério, meus filhos
começaram a se dar conta do que estava me acontecendo embora eu tentasse
disfarçar para que eles não percebessem a minha nova e sinistra união. Afinal, eu
já me sentia na terceira idade e mesmo que muitos achassem comum eu não
aceitava tal situação.
Comecei a fugir, voltando ao passado, mergulhando no mundo do
esquecimento das situações presentes e viajando até a infância perdida quando
eu ainda me via numa grande fazenda, ao lado dos meus pais, fazendeiros de
café da Zona da Mata. Passei a residir no casarão da fazenda com todas as
pessoas do passado. Chegava ao alpendre florido, ia até o jardim colher flores,
caminhava pelas estradas empoeiradas, galopava no meu alazão até o arraial ou
ia de charrete, puxada pelo veloz “Polonês”, um belo cavalo pampa que nos
carregava todos os domingos para a igreja. Minha cabeça já grisalha só se
prendia a essas coisas. Não ligava muito para o presente e a minha conversa
girava sempre em torno do meu novo relacionamento relembrando esse período
distante da minha vida como se estivesse vivendo agora esse tempo tão remoto.
Fui encaminhada para um psiquiatra que me receitou algumas fórmulas e
novos hábitos de vida. Estimulada pelo médico jogava xadrez, damas e fazia
palavras-cruzadas como meio de me proteger. Fui perdendo minhas referências.
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