LiteraLivre Vl. 3 - nº 17 – Set./Out. de 2019
guardado com carinho no quarto dos fundos e nem queriam chegar perto pelo
pavor que aquilo causava. Não fazia sentido estar ali.
A prima Jussara chegou tarde na partilha, precisando de um dinheiro, aceitou
sem pensar duas vezes em ficar com o caixão. Os amigos de seu marido tinham
uma velha caminhonete e fizeram o favor de ajudá-los com o transporte da peça
sem cobrar nada pelo serviço porque acreditavam que aquele momento era de
muita comoção. Na verdade, dava para contar nos dedos os dias que Jussara
teve conversas profundas Anderson em vida. Era uma herança um pouco
estranha, pois afinal, a única coisa que se tem certeza que será levada para o
túmulo é o próprio caixão. Ela colocou o caixão em sua garagem que tinha um
portão de grades abertas e colou um pedaço de papelão em sua frente com os
dizer “vendesse” pintado com guache vermelho das crianças.
Passaram-se semanas e aquele caixão dava ares sombrios à casa de prima
Jussara. Mas aquilo, por foi a festa da criançada! Os filhos de Jussara e toda a
crianças da rua se reuniam para brincar de vampiro, de múmia, de diretores de
filme de terror e até de vendedor de caixão. Claro, tudo isso enquanto a mãe não
estava em casa, pois já havia castigado os três por trazerem toda a moçada da
rua para praticamente destruírem o que lhe poderia ser um dinheiro extra no dia
que alguém finalmente comprasse aquilo.
Havia também anunciado no Facebook e a cada semana que ninguém o
comprava seguida de todo tipo de comentário que se pudesse imaginar, ela
baixava ainda mais o preço. Mas aquilo era a chance de Kevin! Um coveiro de
meia idade que curiosamente também tinha uma estranha obsessão por fazer um
incrível funeral e ter o que chamam de “a boa morte”. Ao ver o preço no
Facebook, não pensou duas vezes em comprá-lo e até limpou o quartinho da
edícula que ninguém usava para poder deixá-lo ali.
Finalmente Jussara conseguiu vender aquele trambolho de madeira e
disfarçar com um pouquinho de durepoxi os pequenos furos abertos por cupins.
Mal sabia Kevin que sua casa estaria prestes a ter a maior infestação de insetos
iria testemunhar e que aquele caixão, que já estava na pose do terceiro dono,
nunca iria servir para se enterrar ninguém.
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