LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
Estranho na lista
Eduardo Carvalho
Rio de Janeiro/RJ
Em pé, num vagão de metrô, eu digitava no telefone a pequena lista de compras:
papel toalha, guardanapo, sabonete, papel higiênico, abacaxi, banana, kiwi,
queijo minas, tapioca, pai... pão.
Isso mesmo. No último item, o aparelho se achou no direito de corrigir e tascou
aquele pai. De bate-pronto, retrocedi duas vezes o cursor para insistir: pão.
Interessante o fato de o chip ter pensado que eu precisava comprar um pai. Há
anos leio que a tecnologia será, cada vez mais, a extensão do corpo, da cabeça e
até da alma da gente. Mas vai acertar em cheio assim no raio que a parta!
Faz muito tempo que busco um pai. Mesmo assim, até agora não havia me
ocorrido tentar encontrá-lo num supermercado.
Estaria na seção de frutas, legumes e verduras? Com ou sem agrotóxico? Ou
repousaria, gelado, na prateleira dos laticínios, entre iogurtes e requeijões?
Faria ele parte do setor onde fica o material de limpeza, disfarçado de detergente
ou de sabão em pó? Ou será que, engarrafado, envelheceria ali no meio dos
vinhos e eu ainda teria o trabalho de examinar características de teor alcoólico,
acidez e amargor?
Um corredor depois do outro, eu seguia o recado do celular, aquele “fica a dica”
me mandando providenciar um pai ali no mercado. Tive vontade de perguntar se
ele me teria alguma serventia mesmo no caso de estar fora da validade. De que
marca seria? Em que faixa de preço se encontraria inserido? Estaria em
promoção?
Antes de chegar ao caixa, ainda considerei consultar na internet a moça da tevê
que, quem sabe, diria: “Você pode substituir um pai por linhaça”. Desisti.
Ando atrás de um pai há muitos e muitos anos. Desde quando ele decidiu se
perder de mim.
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