LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
espalhando prata queimada pelo céu… Novo velho desfile pelos corredores… Mais
alguns pingos, conta-gotas de possibilidades… Felicidade homeopática…
Vêm o terceiro, o quarto e o quinto atos… Todos com roteiro idêntico… Seis,
dezessete, vinte e nove, trinta e dois… Incontáveis atos de sobrevivência
aprendida, talvez, nas poucas chances de aprendizado paternalista… A prata vai
se dissolvendo, marcando a calçada e tudo que está ao redor do bailarino…
Os ponteiros do relógio cortam o tempo e a prata já marca todo o espaço...
Como um Midas de categoria subalterna, tudo o que ele toca, vira prata... Os
ponteiros correm, ele voa e dança, a prata se espalha e as gotas continuam
parcas, dizendo que ainda serão necessários muitos atos para um pouco de
dignidade...
Primeiro momento de intervalo verdadeiro... O descanso do guerreiro que
dança na batalha... O bailarino abre uma mochila marrom-prata e pega uma
marmita prata-prata... O alimento, também prateado, abastece aquela máquina
viva de tentativas... Tentativas de felicidade múltipla... Com os olhos ávidos de
quem não pode perder a corrida para os ponteiros, o bailarino devora, em
colheradas vigorosas, o arroz e feijão prateados de sua existência... A dança
agora é um círculo vicioso, onde o que sustenta também é resultado... Causa e
consequência misturadas... Subversão da lógica vendida...
As pernas esticadas, um suspiro mais intenso e uma olhada para o céu, à
procura do sol... O bailarino fica por um breve instante observando o infinito do
firmamento, talvez contemplando suas irmãs nuvens, tão prateadas quanto ele...
Algumas gotas prateadas caem de seus olhos... Lembrança da infância, perdida e
presente, afogada pelas incertezas de quem está só e mal acompanhado... Mas
não há um muro para lamentar-se... Com a habilidade adquirida na experiência
do labor, o bailarino seca o pequeno córrego de seus olhos, cuidadoso para que a
máscara não caia definitivamente... O rio da prata é represado e a dança
retomada... O show tem que continuar...
Quarenta e cinco, cinquenta e dois, noventa e sete atos... O ritmo do voo e
da dança é sempre intenso e o ritmo das gotas sempre menor do que o
desejado... O espetáculo, quase centenário, parece estar chegando ao fim... Final
ditado pelo conhecimento do cotidiano... Ou apenas uma sensação estranha?... O
bailarino sente que os aplausos podem estar próximos... Uma vaidade merecida
ou uma profecia tantas vezes vislumbrada e esquecida?...
O desprezo dos que não conseguem viver como os outros faz um veículo
subverter as cores... O vermelho e o verde se confundem, a prata do bailarino se
funde à do automóvel inquieto... Essa fusão, no entanto, não serve de freio para
o descontrolado atrás do volante e o bailarino faz seu último voo na direção do
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