Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 199

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 espalhando prata queimada pelo céu… Novo velho desfile pelos corredores… Mais alguns pingos, conta-gotas de possibilidades… Felicidade homeopática… Vêm o terceiro, o quarto e o quinto atos… Todos com roteiro idêntico… Seis, dezessete, vinte e nove, trinta e dois… Incontáveis atos de sobrevivência aprendida, talvez, nas poucas chances de aprendizado paternalista… A prata vai se dissolvendo, marcando a calçada e tudo que está ao redor do bailarino… Os ponteiros do relógio cortam o tempo e a prata já marca todo o espaço... Como um Midas de categoria subalterna, tudo o que ele toca, vira prata... Os ponteiros correm, ele voa e dança, a prata se espalha e as gotas continuam parcas, dizendo que ainda serão necessários muitos atos para um pouco de dignidade... Primeiro momento de intervalo verdadeiro... O descanso do guerreiro que dança na batalha... O bailarino abre uma mochila marrom-prata e pega uma marmita prata-prata... O alimento, também prateado, abastece aquela máquina viva de tentativas... Tentativas de felicidade múltipla... Com os olhos ávidos de quem não pode perder a corrida para os ponteiros, o bailarino devora, em colheradas vigorosas, o arroz e feijão prateados de sua existência... A dança agora é um círculo vicioso, onde o que sustenta também é resultado... Causa e consequência misturadas... Subversão da lógica vendida... As pernas esticadas, um suspiro mais intenso e uma olhada para o céu, à procura do sol... O bailarino fica por um breve instante observando o infinito do firmamento, talvez contemplando suas irmãs nuvens, tão prateadas quanto ele... Algumas gotas prateadas caem de seus olhos... Lembrança da infância, perdida e presente, afogada pelas incertezas de quem está só e mal acompanhado... Mas não há um muro para lamentar-se... Com a habilidade adquirida na experiência do labor, o bailarino seca o pequeno córrego de seus olhos, cuidadoso para que a máscara não caia definitivamente... O rio da prata é represado e a dança retomada... O show tem que continuar... Quarenta e cinco, cinquenta e dois, noventa e sete atos... O ritmo do voo e da dança é sempre intenso e o ritmo das gotas sempre menor do que o desejado... O espetáculo, quase centenário, parece estar chegando ao fim... Final ditado pelo conhecimento do cotidiano... Ou apenas uma sensação estranha?... O bailarino sente que os aplausos podem estar próximos... Uma vaidade merecida ou uma profecia tantas vezes vislumbrada e esquecida?... O desprezo dos que não conseguem viver como os outros faz um veículo subverter as cores... O vermelho e o verde se confundem, a prata do bailarino se funde à do automóvel inquieto... Essa fusão, no entanto, não serve de freio para o descontrolado atrás do volante e o bailarino faz seu último voo na direção do 196